Pra lá de Marrakesh
*Raimundo Nonato Brabo Alves
Essa expressão era muito popular na década de 1970 e significava que quem estava "prá lá de Marrakesh" estava meio atabalhoado ou perturbado do juízo. Lembrei a expressão por ler as matérias que tratam da reunião da COP-22, a conferência do clima da ONU, que se iniciou nesta segunda feira 07 de novembro em Marrakesh, no Marrocos. Essa expressão caiu de uso. Hoje o Marrocos é uma rota turística de alta demanda, com hotéis suntuosos.
Chamou meu interesse a manchete sobre o relatório dos pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UERJ) que será apresentado na referida conferência, alertando prefeitos das cidades brasileiras para as consequências dramáticas do aquecimento global.
Segundo o que recomendam os pesquisadores no relatório, "os municípios que não mudarem a forma com que lidam com água, transportes e gestão de lixo e resíduos enfrentarão problemas como desabastecimento e energia, hospitais superlotados, inundações e desmoronamentos, com impactos mais fortes nas regiões mais pobres".
Nada mais oportuno que chamar a atenção dos gestores municipais para os problemas ambientais que no final das contas oneram os orçamentos das prefeituras para minimizar seus impactos, sem promover bem-estar aos munícipes. Afinal segundo os mesmos pesquisadores, foram inúmeras as conferências realizadas no campo da diplomacia, porém decepciona o abismo entre as discussões globais sobre o clima e a "vida real" das cidades brasileiras.
A preocupação com a água é imperiosa. Neste item extrapola a responsabilidade da municipalidade. Escrevi sobre esse tema logo após o desastre de Mariana:
Em comentário da Lei 9433/1997 que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos, Paulo Affonso Leme Machado em seu livro Recursos Hídricos, Direito Brasileiro e Internacional afirma: "o uso da água não pode ser apropriado por uma só pessoa, física ou jurídica, com exclusão absoluta dos outros usuários em potencial; o uso da água não pode esgotar o próprio bem utilizado. A concessão ou a autorização (ou qualquer tipo de outorga) do uso da água deve ser motivada ou fundamentada pelo gestor público".
Paulo Affonso afirma ainda na página 26 do referido livro: "O poder Público não pode agir como um ’testa-de-ferro’ de interesses de grupos para excluir a maioria dos usuários do acesso qualitativo e quantitativo às águas. Seria um aberrante contrassenso o domínio público ’aparente’ das águas, para privatizá-la, através de concessões e autorizações injustificadas do Governo Federal e dos Governos Estaduais servindo ao lucro de minorias. A água é um direito humano, não um produto a ser comercializado".
Será que a legislação vem sendo aplicada ou a realidade vem se contrapondo ao que propõe Paulo Affonso e se transformando num "aberrante contrassenso". A poluição recente do Rio Doce expõe o Brasil ao mundo o quão atabalhoada vem sendo a política de administração de nossos recursos hídricos.
Mais de 300 mil cidadãos de maneira trágica estão submetidos a humilhante disputa de míseros litros de água para matar a sede, ou ao pagamento de preços aviltados por maior porção de "água mineral" para o atendimento diário de suas necessidades básicas.
O gerenciamento do recurso água deve ser responsabilidade dos municípios, estados e da União. O maior desastre ambiental do Brasil, na bacia do Rio Doce completou um ano sem que praticamente nada se tenha feito, nem para reparar os prejuízos dos munícipes de Mariana diretamente afetados, nem como lição para endurecer a legislação ambiental.
No meio urbano brasileiro as condições se uso do solo são das mais críticas. Raros os municípios que tem sua ocupação ou planejamento urbano com base em adequado código de postura municipal. As praças públicas, parques e áreas verdes são preteridos em razão da especulação imobiliária.
As ocupações desordenadas predominam, sem o acompanhamento da infraestrutura adequada como água tratada e esgoto sanitário. Ao contrário, as condições de infiltração do solo são obstruídas com vias asfaltadas e construções de calcadas até nos quintais no entorno das residências.
Áreas alagadas ou pantanosas que deveriam ser destinadas a preservação e retenção de água são inicialmente invadidas por moradias irregulares e depois aterradas, transformando-se posteriormente em cenário de problemas sociais nas enchentes. Uma nova política de reordenamento territorial deve ser concebida e executada. Necessitamos tanto de reforma agrária como de reforma urbana.
Nas últimas eleições municipais os problemas ambientais não foram nem de longe preocupação de nossos candidatos a prefeitos e vereadores. Nada mais oportuno que focar de agora em diante, os prefeitos municipais como responsáveis e protagonistas das soluções ambientais no Brasil. Principalmente quando a maioria das prefeituras não cumpriu o prazo para o cumprimento da Política Nacional de Resíduos Sólidos e a sociedade continua a ser a crescente mina de rejeitos, com o consumo desenfreado.
Vamos aguardar os novos planos de desenvolvimento municipal. Principalmente se estarão de acordo com as orientações técnicas de nossos especialistas ambientais a fim de reduzir o abismo identificado pelos pesquisadores da UERJ. E torcer para que – mais uma vez – as nossas improrrogáveis soluções ambientais não fiquem "prá lá de Marrakesh", literalmente.
*Raimundo Nonato Brabo Alves é Pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental
Fonte: EcoDebate