Opinião

Neonegacionismo na foz do Amazonas: contradições entre discurso e prática do governo brasileiro

*Caetano Scannavino

**Adilson Vieira

***Renan Andrade

Luiz Inácio Lula da Silva construiu sua trajetória política como um líder popular que defende justiça social, soberania nacional e desenvolvimento sustentável. Em seu terceiro mandato, mantém um discurso que prega autodeterminação dos povos, preservação ambiental e combate às mudanças climáticas.

No entanto, suas ações revelam um paradoxo: enquanto condena o negacionismo climático e se diz defensor da Amazônia, pressiona pela licença para explorar combustíveis fósseis na foz do Amazonas. Confunde órgão de Estado com órgão de Governo ao se referir ao IBAMA, minimiza riscos científicos e enfraquece o Acordo de Paris para justificar interesses econômicos imediatos.

Usa o argumento da soberania energética, alegando que o país não pode abrir mão de recursos estratégicos. Segue a cartilha do “mais do mesmo” de nações acomodadas na inação climática. É o chamado neonegacionismo: já reconhecem o aquecimento global e a influência humana, mas acreditam que ainda há tempo para continuar desmatando e queimando combustíveis fósseis. Só que não há. A ciência, assim como as enchentes no Sul e as secas no Norte já tem nos alertado bastante para isso.

Nenhuma receita do petróleo compensará o caos humanitário decorrente de cada 0,1°C de aumento na temperatura global.

Se mantidos os padrões atuais de emissões, os custos à economia global serão de US$ 178 trilhões entre 2021 e 2070 (Deloitte). Os custos humanos serão ainda maiores: insegurança alimentar, falta de água, migrações em massa, piora na saúde e bem-estar, principalmente das populações mais pobres.

Estudos indicam que cada US$ 1 investido em mitigação poupa entre US$ 1,5 e US$ 4 em custos com desastres climáticos (Nature Climate Change). Argumentar que é necessário explorar petróleo para financiar a transição energética é como recomendar “fumar o dobro para arrecadar mais dinheiro e pagar o tratamento do câncer de pulmão”. Se essa retórica justifica a perfuração na Margem Equatorial, por que não há um plano robusto de transição energética a partir da exploração vigente? O Plano de Negócios 2025-2029 da Petrobras prevê apenas 15% dos investimentos na transição, enquanto mais de 70% seguem destinados à exploração e produção de petróleo.

Ao insistir em uma visão geopolítica ultrapassada, Lula se distancia do estadista que gostaria de ser e que o mundo precisa. O momento exige lideranças globais mais humanistas e pacificadoras, capazes de mobilizar corações e mentes para um futuro sustentável. Mas Lula não pode ser aquele que usa o microfone em defesa do clima e a caneta para abrir a maior nova frente petrolífera do planeta, com pico de produção previsto apenas após 2040.

Lula pressiona por uma licença de exploração na foz do Amazonas, a mesma região que sediará a COP 30, enquanto o Brasil preside as negociações climáticas globais. Com isso, compromete sua capacidade de liderar a difícil missão de manter o mundo na meta pactuada em Paris: limitar o aumento da temperatura em 1,5°C em relação à era pré-industrial. O IPCC alerta que, para isso, é necessário reduzir as emissões de GEE em 43% até 2030 e 60% até 2035, visando zerar as emissões líquidas em 2050.

Sem lideranças engajadas, corremos o risco de a COP de Belém ser lembrada como aquela em que desistimos da meta de 1,5°C. O Brasil poderia aproveitar essa oportunidade para virar a chave, a partir do Sul Global, pautando ao invés seguirmos sendo pautados.

Como presidente da COP 30, antes de qualquer decisão sobre a foz do Amazonas, o Brasil tem uma chance única de influenciar a agenda global. Poderíamos propor o que não foi feito em 30 anos de COPs: um plano claro e factível para a eliminação gradual dos combustíveis fósseis. Já há compromissos para redução de emissões da pecuária e do desmatamento zero, mas nada de mais concreto sobre os hidrocarbonetos, salvo um “transition away from fossil fuels” que com muito esforço entrou no apagar das luzes no documento da COP 28 em Dubai, o que de certa forma legitima qualquer passo à frente nesse sentido.

Os combustíveis fósseis são os verdadeiros vilões do clima, responsáveis por mais de 70% das emissões globais de GEE. Segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), a demanda global por petróleo deve cair a partir de 2030, assim como o preço do barril devido à transição para fontes renováveis. Nem será necessário encontrar mais petróleo: as reservas recuperáveis chegaram a 1,624 trilhão de barris em 2022, mas apenas metade será consumida (Rystad Energy).

Já que é para “acabar com a lenga-lenga” – expressão usada recentemente por Lula –, é sobre isso que devemos falar. Se o Brasil começar a liderar essa agenda, mesmo que a negociação se estenda até a COP 31, já será um feito histórico, digno de reconhecimento. Caso contrário, ficará para os livros de história como o país que mais expandiu sua produção de petróleo enquanto o planeta agonizava de calor – um novo parágrafo na história da inércia climática, assim como foi o último país a abolir a escravidão.

O Presidente Lula é inteligente, se refletir melhor, constatará que o debate sobre hidrocarbonetos precisa ir além das fronteiras nacionais. Por isso, seria pouco inteligente decidir sobre a perfuração na foz do Amazonas antes da COP da Amazônia, durante seu mandato na presidência das negociações globais.

A exploração na foz do Amazonas não é apenas um problema ambiental, mas um dilema político, ético e humanitário que exige uma decisão clara. O planeta não suporta mais contradições ou discursos vazios. O governo brasileiro tem uma oportunidade única de romper com uma lógica predatória e construir um futuro sustentável.

Se Lula deseja ser lembrado como um líder que realmente transformou o Brasil e teve impacto global, precisa escolher entre ficar preso ao passado ou assumir um compromisso real com o futuro. O país verde-amarelo mais biodiverso do mundo não pode amarelar, precisa sim é esverdear com a caneta da COP nas mãos.

Sem medo de ser feliz…

*Caetano Scannavino é empreendedor social com quase 40 anos de atuação na Amazônia, coordenador do Projeto Saúde & Alegria.

**Adilson Vieira é sociólogo, membro da Coordenação da Rede de Trabalho Amazônico e do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente.

***Renan Andrade é gestor ambiental, ativista climático e coordenador de planejamento estratégico da 350.ORG

Fonte: Um só Planeta