Microplásticos: de crise ambiental a questão de saúde pública
Décio Semensatto*
Mariana Ceci**
Anna Miranda***
Nas duas primeiras décadas dos anos 2000, o mundo viu a produção de plástico dobrar, alcançando a impressionante marca dos 460 milhões de toneladas produzidas apenas no ano de 2019, de acordo com a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Metade do plástico produzido no mundo foi feito nos últimos 15 anos, mas apenas 9% dos resíduos globais são reciclados.
Os apelos globais pela redução no consumo e na produção de plástico não são novidade. Contudo, enquanto governos e indústria engatinham em soluções de pouco impacto para reduzir a produção mundial de plástico, os efeitos da crise ambiental começam a alcançar, cada vez mais rápido, os seres humanos.
A comunidade científica tem investigado e identificado a presença de microplásticos em todo o ambiente, dos rios amazônicos aos tecidos internos do corpo humano. De acordo com a definição do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), os microplásticos são partículas plásticas sólidas não solúveis em água com tamanho que pode variar entre 0,001 a até 5 milímetros. As partículas com menos de 0,001 milímetro são classificadas como nanoplásticos e encontram-se numa escala em que podem ser absorvidas pelas células, fato que evidencia a necessidade de avanços para avaliar adequadamente seus possíveis riscos.
Uma pesquisa recente, conduzida por pesquisadores da Universidade de São Paulo e Universidade Livre de Berlim, publicada no Journal of the American Medical Association, mostrou que já é possível identificar a presença de microplásticos no cérebro humano. E não é só isso: os microplásticos também já foram identificados em nosso coração, pulmões e sangue.
Mas como esse material entra no corpo humano? Simples: ele está em toda parte, no ar que respiramos e na água que bebemos. Derivado do petróleo, o plástico pode levar séculos para se decompor na natureza, e à medida que se fragmenta em partículas cada vez menores contamina o ambiente. Um estudo conduzido por pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) investigou a poluição do reservatório Guarapiranga, principal fonte de abastecimento da Região Metropolitana de São Paulo, a maior cidade da América Latina.
Os pesquisadores coletaram amostras de sedimentos em oito locais do reservatório, em momentos de seca e em períodos chuvosos. Os resultados apontam que as concentrações de microplásticos oscilam, e são maiores perto das áreas urbanas e durante a estação seca; contudo, a presença das partículas não se limita às áreas urbanas, com ampla intervenção dos seres humanos. Estudos conduzidos pela equipe do pesquisador da Unifesp e integrante do Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência (SoU_Ciência), Décio Semensatto, foram os primeiros a mostrar que os microplásticos estão amplamente difundidos em sedimentos de rios amazônicos. Isso significa que os efeitos da poluição já estão espalhados pelo globo, inclusive em lugares onde a intervenção humana parece menos aparente, como na maior reserva de biodiversidade do planeta, a Amazônia. Outras pesquisas também apontam a ingestão de plástico por peixes de diversos níveis tróficos nos rios amazônicos.
Apesar de carregarem “micro” em seu nome, os impactos dos microplásticos à saúde humana não devem ser desprezados. Um estudo publicado no New England Journal of Medicine demonstrou que a presença de micro e nanoplásticos pode estar relacionada ao aumento de ataques cardíacos e derrames. Podem também afetar o equilíbrio químico e hormonal em mamíferos, com consequências diretas na tireoide, nos testículos e nos ovários, como destacou um estudo publicado na Frontiers in Endocrinal Medicine.
Dos oceanos ao nosso cérebro, os micro e nanoplásticos têm se tornado uma preocupação crescente para a comunidade científica — e devem ter a atenção de toda a sociedade. Os esforços governamentais e internacionais não têm se apresentado à altura da crise. Pesquisadores que estão desenvolvendo análises e estratégias para redução da produção e do consumo de plástico precisam passar a atuar lado a lado dos responsáveis por criar e implementar políticas públicas em seus respectivos países.
Temos o exemplo da Rede Colaborativa de Pesquisa em Poluição da Água e Recursos Hídricos (HydroPoll), que reúne pesquisadores da Unifesp, USP, Unesp, UFSCar, UFABC, UFJF, Ufersa, Univates e representantes da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), mas as iniciativas ainda são poucas em números, alcance e investimentos diante do tamanho e da urgência do desafio.
Na natureza, o impacto da poluição causada pelo plástico já é uma realidade, com o registro anual da morte de milhões de animais, de pássaros a organismos marinhos. Estudos apontam que, até o ano de 2050, praticamente todas as aves marinhas estarão consumindo plástico. Pouco a pouco, essa crise começa a alcançar a espécie humana e, como todas as crises ambientais, passará a ser também uma crise de saúde pública.
*Décio Semensatto é doutor em Geociências e Meio Ambiente, professor associado da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisador do Centro de Estudos Sociedade Universidade e Ciência (SoU_Ciência).
**Mariana Ceci é mestranda em Divulgação Científica e Cultural (Unicamp) e jornalista científica no Centro SoU_Ciência.
***Anna Miranda é mestre em Comunicação e Sociedade (UFT) e jornalista científica no Centro SoU_Ciência.
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil