Opinião

O ponto climático do não retorno

*Carlos Bocuhy

O Acordo de Paris passou a ser uma agenda secundária. Quem se senta à mesa de negociação faz o discurso da sustentabilidade, mas rema em direção à sua segurança doméstica e interesses geopolíticos.

As afirmativas sobre aquecimento global estão se tornando cada vez mais dramáticas. Há pouco mais de um ano, por ocasião da divulgação do último relatório AR6 do Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC), o secretário-geral da ONU Antonio Guterres afirmou que “a humanidade está à beira do precipício e pisando fundo no acelerador”. Recentemente sua declaração foi que “o mundo está na era da ebulição e não mais do aquecimento”.

A ebulição leva ao degelo polar. A Antártida perdeu, em pleno inverno do Hemisfério Sul, 1 milhão de km² de gelo comparado à média dos últimos 40 anos.

As autoridades deixaram a linguagem do alerta e passaram a noticiar tragédias climáticas, denotando mudança de postura, do alerta para devastação. Esse reconhecimento oficial também aponta os riscos do ponto de não retorno. A postura sinaliza piora das perspectivas futuras, potencializando o contexto da emergência climática.

A meta do Acordo de Paris, de manutenção de 1,5°C de aquecimento médio planetário do início da era industrial até o ano de 2100, demandaria medidas muito mais eficazes do que as que estão sendo praticadas hoje, o que reforça a tese de que deixamos passar essa oportunidade.

A Agência Internacional de Energia (AIE) aponta que as emissões decorrentes da queima de carvão, petróleo e gás em 2023 deverão estar no mesmo patamar de 2022 e continuam a receber fortes subsídios estatais. Nada mudou, só piorou.

Na perspectiva atual, teríamos aumento de + 2,5°C até o final do século, portanto + 1°C acima dos limites de segurança do Acordo de Paris (1,5°C), considerado risco “aceitável”. É preciso ressaltar que os duros efeitos adversos que estamos vivendo hoje ocorrem no patamar aproximado de + 1,2°C, apenas 0,3°C abaixo do limite estabelecido no Acordo de Paris.

Quando dimensionamos os impactos que estão ocorrendo hoje com + 1,2°C, como ondas de calor extremo, incêndios, derretimento das calotas polares, devemos atentar para o que o IPCC declara: os efeitos adversos do aquecimento global tem se demonstrado piores do que a ciência esperava.

Abrigando meio bilhão de pessoas, a região do Mediterrâneo está sendo um dos grandes focos da crise climática. Segundo editorial do jornal Le Monde, o calor extremo registrado em julho promove uma “ameaça existencial”, frase cunhada a partir de pronunciamento de Joe Biden, diante da onda de calor extremo que se alastrou também pelo centro-oeste dos Estados Unidos. Ao Norte, no Canadá, cerca de 150 mil pessoas estão desabrigadas em função de 800 incêndios registrados desde maio.

O editorial do Le Monde vai fundo nas causas do aquecimento global, afirmando ser indesculpável a persistência de um alto consumo de petróleo e gás.

Antonio Guterrez relaciona causa e efeito e responsabiliza poluidores: “Os níveis de lucro dos combustíveis fósseis e a inação climática são inaceitáveis.” O insucesso da última cúpula climática global, a COP27, que aconteceu no Egito, decorreu da resistência negativa dos países produtores de petróleo do Golfo e da China, com sua mega-atividade de queima e exploração de carvão.

As multinacionais do petróleo estão claramente recuando em seus compromissos para conter o volume de extrações e emissões. Demonstram que pretendem prosseguir lucrando, não importa os efeitos nefastos que isso possa provocar.

Autoridades que acompanham os bastidores das negociações climáticas, inclusive do G20, afirmam que esperar a livre adesão do setor para a transição ecológica é pura ingenuidade. Nada ocorrerá sem a responsabilização dos grandes poluidores pelos danos que estão causando, com a retirada de subsídios e forte taxação do setor.

Na semana passada, em editorial, o Los Angeles Times afirmou que “muitas pessoas poderosas no governo, empresas e organizações civis se apegaram à fantasia de que algumas das empresas mais poderosas e destrutivas da história acabariam enfrentando a realidade e se transformariam por iniciativa própria em operações limpas e sustentáveis”.

O apelo humanitário dos impactos causados pela mudança climática justifica medidas globais firmes. Na Sicília (Itália) e em Rodhes (Grécia), regiões duramente atingidas por incêndios, nota-se revolta e questionamento sobre responsabilidades. Além da perda de vidas humanas e enormes prejuízos à população, patrimônios históricos foram destruídos. Os restos mortais de Bento, o Mouro, padroeiro da cidade de Palermo, foram consumidos pelas chamas.

Na Argélia, do outro lado do Mediterrâneo, ventos de 140 km por hora impulsionaram as chamas debaixo de um calor de 50°C, matando dezenas de pessoas e destruindo vilas, deixando milhares de desabrigados.

O cenário geopolítico traz novos desafios. Há forte instabilidade política no cenário global. A disputa geopolítica Ocidente-Oriente registra agora a potencialização do poder bélico dos países africanos pela Rússia. Não se esperava no pós-acordo de Paris a retomada da guerra fria que toma proporções globais, diante de conflito armado Rússia-Ucrânia. Nesse cenário, os países do G20 estão se esquivando dos acordos sobre matrizes limpas. A disputa armamentista e bélica leva à intensificação e manutenção do uso de aparatos militares baseados em combustíveis fósseis.

O Acordo de Paris passou a ser uma agenda secundária. Quem se senta à mesa de negociação faz o discurso da sustentabilidade, mas rema em direção à sua segurança doméstica e interesses geopolíticos. Nesse estado de beligerância, associada à resistência econômica dos países e setores produtores de petróleo, gás e carvão, nada de significativo em reduções deverá ser esperado para a COP28, que ocorrerá no final do ano em Dubai.

A reação do setor fóssil está iniciando mais um revival de negacionismo. A principal estratégia é lançar dúvidas sobre a certeza científica defendida pelo IPCC. A humanidade assistiu algo semelhante com relação aos estertores da indústria do tabaco. Espernear, dissimular, contratar pesquisas, declarações, financiar batalhões de advogados e toda a sorte de manobras para prolongar a exploração massiva de carvão, óleo e gás. Mas não é só. No Brasil unem-se ao coro “mortido” os fortes interesses de uso ambicioso do solo por setores retrógrados da agropecuária, responsável pelo desmatamento ilegal e que vem se fortalecendo dentro do poder legislativo nacional.

As cúpulas climáticas vêm sendo direcionadas para países menos progressistas com relação às matrizes de energia. No ano passado foi a COP 27 do Egito, com participação ampliada de lobistas do setor de petróleo. Neste ano, a COP 28 será nos Emirados Árabes, coordenada por um CEO da maior empresa petrolífera local. No ano que vem será na Austrália, que reluta em abrir mão do seu PIB baseado na exploração do carvão.

Apesar dos entraves, a COP 28 deverá ao menos colocar em pauta metas mais rigorosas sobre emissões e o acordo de perdas e danos, que pretende estabelecer o aporte de recursos dos países mais ricos, que mais poluem, para os países em desenvolvimento, para que estes possam adaptar-se, na medida do possível, aos efeitos adversos do clima.

A pergunta que paira no ar é se a espécie humana, apesar de todas as dificuldades geopolíticas e do poderio econômico dos combustíveis fósseis, conseguirá com espírito humanitário frear as alterações nocivas na atmosfera terrestre, antes de ultrapassar o ponto de não retorno.

*Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).

Fonte: O Eco