A Torre de Babel das mudanças climáticas
*Carlos Bocuhy
As incongruências vão da velha tática da obstrução ao diversionismo parlamentar. Não é de hoje que os interesses nacionais se sentam à mesa das negociações climáticas apenas em defesa de interesses econômicos e geopolíticos domésticos.
A Convenção-Quadro da ONU sobre Mudança do Clima (UNFCCC), preparatória para a COP28, que acontece nos Emirados Árabes em novembro, está encerrando hoje (15/06) seus trabalhos em Bonn, na Alemanha, onde 196 países patinaram sobre o que discutir. O pomo da discórdia continua sendo a responsabilidade dos países na diminuição das emissões de gases efeito estufa (GEE) e seu financiamento.
As conferências sobre clima em Bonn ocorrem anualmente como preparatórias para as conferências climáticas globais (COPs). Neste ano, o objetivo de aparar arestas transformou-se em uma verdadeira Torre de Babel. Harjeet Singh, ativista da CAN International define a situação como “uma esquiva de discussões financeiras críticas, evitando obrigações e responsabilidade histórica dos grandes emissores responsáveis pela crise climática”.
O diplomata Túlio Andrade, responsável pela delegação brasileira, criticou o andamento dos trabalhos e afirmou que a negociação pura e simples está se sobrepondo ao entendimento mútuo: “O que aconteceu ontem é inaceitável e não pode se repetir de novo. Os países precisam ir além dos seus interesses nacionais”, disse.
As perdas para a humanidade são incalculáveis, e o reducionismo da discussão incomoda cientistas, ativistas e representantes das comunidades mais atingidas. “Uma turma de escola primária”, definiu Nabeel Munir, diplomata paquistanês e copresidente da conferência. Munir sacudiu o ambiente com forte apelo: “Por favor, acordem, o que está acontecendo ao seu redor é inacreditável”.
Munir tem razão. Depois de uma semana de idas e vindas discutindo apenas a agenda – ou o que deveria ser discutido –, foi aplaudido ao afirmar: “Volto e digo para o meu povo que estávamos lutando por uma agenda?” No Paquistão 33 milhões de pessoas foram atingidas pelas inundações potencializadas pelas mudanças climáticas em 2022.
As incongruências vão da velha tática da obstrução ao diversionismo parlamentar. Não é de hoje que os interesses nacionais se sentam à mesa das negociações climáticas apenas em defesa de interesses econômicos e geopolíticos domésticos. A busca pela hegemonia política mantém os grandes poluidores presos ao seu produto interno bruto lastreado em matrizes fósseis, retroalimentados pelo avanço da guerra fria.
Dinheiro existe. Enquanto os aparatos militares globais continuam a consumir US$ 3,5 trilhões por ano, alega-se falta de recursos para o financiamento climático de US$ 100 bilhões anuais, suficientes para atenuar os avanços desastrosos do clima.
Desde 2009 os países mais ricos já sinalizaram destinar US$ 100 bilhões anuais para o financiamento climático. O prazo era 2020. Nada disso aconteceu, apenas a reiteração das promessas e a institucionalização do fundo para perdas e danos ocorrida durante a COP27, em Sharm El Sheik, no Egito, mas ainda sem fundos aportados.
Ani Dasgupta, presidente do World Resources Institute (WRI), afirmou após a COP27: “Este fundo de perdas e danos significa uma salvação para famílias pobres cujas casas foram destruídas, agricultores cujos campos foram arruinados e ilhéus forçados a deixar suas moradias ancestrais.
Este resultado positivo da COP27 é importante para reconstruir a confiança com os países vulneráveis”.
O argumento central da discussão climática é, ou deveria ser, manter condições minimamente razoáveis para a sobrevivência da humanidade. As contribuições nacionalmente determinadas (NDC) atuais têm sido insuficientes para solucionar o aquecimento global; portanto as metas de todos os países precisam ser elevadas o quanto antes para viabilizar o limite de 1,5 grau Celsius, conforme apontado pelo IPCC em seu 6º relatório de avaliação (AR6).
Quando mais difícil fica manter a temperatura em 1,5 grau, mas se avizinha um futuro catastrófico, o que exigirá mais esforços, especialmente dos países com maior emissão.
Nada disso está acontecendo. Em Bonn, o tom da conversa é desviar-se do assunto, especialmente porque a insuficiência das ações nacionais para reduzir emissões e mitigar o aquecimento global surge como item novo na agenda de negociação. Proposto pela União Europeia, o Programa de Trabalho para Mitigação (MWP) pretende aumentar os compromissos nacionais de redução de emissões de carbono.
Faz todo o sentido. Mas percebe-se claramente a criação de subterfúgios para arrefecer a pauta. Na hora de pagar a conta, todos se levantam da mesa.
Diego Pacheco, negociador boliviano, disparou: “Em nossa fome de ação, as discussões se concentraram exclusivamente na ampliação da ambição em um cenário de promessas não cumpridas, compromissos fracassados e baixa entrega de meios de implementação e apoio dos países desenvolvidos”.
A situação é muito grave, pois todos estarão vulneráveis diante das mudanças climáticas. Basta olhar para os Estados Unidos, um dos maiores países emissores de GEE, que ainda não restaurou a saúde econômica de New Orleans após o furacão Katrina.
Nos meios governamentais americanos prospera a ideia de desapropriar áreas inseguras, especialmente vulneráveis a incêndios e intempéries. As companhias de seguro já são subsidiadas pelo governo em muitas áreas costeiras, o que demanda expressivo uso de recursos públicos.
Na Califórnia, cada vez mais castigada pela secura do clima e incêndios florestais, as taxas de seguro sobem vertiginosamente. Uma das maiores seguradoras, a State Farm, está se recusando a emitir mais apólices diante do que classifica como “exposição a catástrofes em rápido crescimento”.
Essa realidade de um país rico como os Estados Unidos, onde a segurança faz parte do mercado imobiliário e os seguros residenciais cabem nos bolsos da classe média, está em risco de suplantar possibilidades.
No Brasil, onde estudos apontam que 29% da população tem renda familiar de R$ 497, desenha-se um contexto em que áreas de risco irão consumir moradias sem piedade e sem reparação. Vide o drama das 1.997 vidas perdidas e 3,4 milhões de pessoas desalojadas nos últimos dez anos, com prejuízos superiores a R$ 400 bilhões.
Milhões de pessoas estão cada vez mais expostas às intempéries – e nem todos conseguem reconstruir. A insegurança alimentar e hídrica aguda grassam soltas, especialmente na África, Ásia, América Central e do Sul. A ONU realiza estudos sobre as perdas globais, apontando que “o aumento das ondas de calor, secas e inundações já estão excedendo os limites de tolerância de plantas e animais, levando à mortalidade em massa em espécies como árvores e corais. Esses extremos climáticos estão ocorrendo simultaneamente, causando impactos em cascata que são cada vez mais difíceis de gerenciar”.
Toda essa incerteza será levada para maior discussão na COP 28, que ocorrerá no final do ano nos Emirados Árabes, um dos epicentros globais do petróleo – e com conflito de interesses explícito. A presidência dos trabalhos estará a cargo do Sultão Ahmed al-Jaber, CEO da petroleira estatal Adnoc.
Note-se que a política estatal local é repressiva e tem sido objeto de duras críticas de entidades internacionais que atuam em defesa de direitos humanos. A falta de liberdade de expressão tornará a pressão social impossível durante a COP28, impedindo importantes mecanismos de controle social sobre os governos e o processo decisório.
A postura adotada na Conferência de Bonn e as perspectivas para a COP28 apontam para maiores riscos e vulnerabilidades. Sinaliza-se mais e mais a deseconomia climática planetária. Não discutir soluções adequadas e estruturais para a crise climática colocará em risco a segurança de bilhões de pessoas.
*Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).
Fonte: O Eco