O mito da reciclagem como panaceia para a poluição por plásticos
* Ademilson Zamboni
A situação precária da gestão de resíduos no Brasil e a reciclagem como elixir não encerram o problema dos plásticos descartáveis que vazam para os oceanos. É preciso diminuir sua produção.
Febre no mundo corporativo, a agenda ESG (Enviromental, Social and Governance) criou a ilusão de que as empresas e o mercado financeiro finalmente acordaram para a necessária transição em direção a uma economia que responda, de forma ética e responsável, aos grandes desafios ambientais e sociais do nosso tempo.
Quando o assunto é poluição por plásticos, uma questão tão séria que mobilizou um tratado global no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), os compromissos corporativos no Brasil e na América Latina têm se limitado a aumentar os percentuais de reciclabilidade e a proporção de plástico reciclado pós-consumo reincorporados nas embalagens.
Enquanto isso, de acordo com um novo estudo internacional do Instituto 5 Gyres, 170 trilhões de fragmentos de plástico já estão acumulados nos oceanos. Se não forem adotadas medidas assertivas, como a limitação da produção e da oferta de plásticos e a responsabilização dos fabricantes pelo gerenciamento dos resíduos pós-consumo, o cenário que se desenha é alarmante.
Já está mais do que comprovado cientificamente que o plástico, um subproduto do petróleo, leva centenas de anos para se decompor. Esse material ainda libera gases de efeito estufa ao longo de todo o seu ciclo de vida. Além dos impactos ambientais e danos à saúde humana, a poluição por plásticos também causa expressivas perdas na economia.
Estimativas do Fórum Econômico Mundial e da Fundação Ellen MacArthur apontam que, com apenas 14% das embalagens plásticas sendo recicladas por ano mundialmente, são desperdiçados de 80 a 120 bilhões de dólares (o equivalente a algo em torno de R$ 420 a R$ 630 bilhões) devido à perda de valor do material que poderia ser aproveitado.
Isso sem contar os efeitos negativos na vida marinha, que impactam a economia da pesca e do turismo, por exemplo.
Investir na expansão e otimização da reciclagem em geral e dos plásticos em particular é, sem dúvida, necessário. No entanto, isso está longe de ser uma solução para os problemas causados pelo modelo econômico linear e nossa cultura de superconsumo.
Apesar de a coleta seletiva e a reciclagem serem a estratégia promovida como solução, esses processos carregam uma série de limitações e violações de direitos, como a falta de pagamento pelos serviços prestados e a não profissionalização da categoria de catadores de materiais recicláveis.
A logística de recuperação e reciclagem de resíduos, especialmente de embalagens pós-consumo, é intensiva no uso da energia e resulta em material de qualidade e funcionalidade inferior ao original, o que leva a restrições de uso pela indústria e ao downcycling (processo “cascata” de contínua piora do material).
Mesmo quando o produto é reaproveitado, como no caso do PET para a fabricação de novas garrafas, ele não suporta muitos ciclos de reciclagem. Além disso, alguns plásticos não possuem cadeias de reciclagem devido a questões como microdimensões, falta de viabilidade tecnológica e financeira e inexistência de escala e mercado, como é o caso de embalagens de salgadinhos, copos, talheres, pratos e canudos.
Como resultado da superprodução de plásticos e dos parcos investimentos públicos e privados na gestão de resíduos e na cadeia de reciclagem, o Brasil despeja nos oceanos pelo menos 325 mil toneladas de rejeitos todos os anos, de acordo com o estudo “Um Oceano Livre de Plástico”, publicado pela Oceana.
A quantidade só não é maior porque 90% de tudo que é reciclado no Brasil passa pelas mãos de profissionais que prestam um serviço ambiental urbano essencial – os catadores de materiais recicláveis.
Os produtos descartáveis e as embalagens de uso único estão no centro do problema da poluição por plástico nos oceanos. Ano após ano, as empresas líderes de bebidas e alimentos ultraprocessados figuram no topo dos rankings globais de maiores poluidores de plástico, como revelam os relatórios feitos pelo movimento internacional Break Free From Plastic.
Eles são elaborados com base em análises do material recolhido em mutirões de limpezas de praias e rios ao redor do planeta.
Mesmo assim, as empresas que compõem a cadeia produtiva do plástico não movem um milímetro na direção de avanços concretos. Ao contrário, asseguram recursos infinitos em publicidade para impulsionar a narrativa de que a solução está nos outros: alguém que faça a coleta seletiva, o cidadão que se vire para “consumir conscientemente” e a reciclagem que dê conta do resto!
E aqui entra o ESG: um pacote de mensagens corporativas simpáticas que proporciona conforto aos investidores, fundamenta o discurso raso do lobby e preenche as sessões de “sustentabilidade” nos meios de comunicação. Com isso, esconde-se o fato de que a indústria não está disposta a se responsabilizar pelos impactos que seus produtos e embalagens descartáveis geram.
Para reverter esse quadro é preciso implantar a Economia Circular do Plástico, modelo que subsitui o sistema vigente, baseado em extrair-produzir-consumir-descartar-poluir. A lógica circular aplicada aos plásticos pressupõe a eliminação de itens e embalagens desnecessárias já na fase de concepção de produtos e serviços.
Em seguida, apenas itens retornáveis, reutilizáveis, compostáveis ou efetivamente recicláveis são colocados no mercado, priorizando-se as opções que mantêm o material em circulação. Nessa abordagem, a eliminação, a redução e o reuso são privilegiadas, e a reciclagem é um dos últimos recursos.
Além de minimizar impactos ambientais, a Economia Circular pode gerar empregos, renda e o desenvolvimento da economia local. Segundo estimativas da Fundação Ellen MacArthur, a substituição de apenas 20% das embalagens plásticas descartáveis por alternativas reutilizáveis, por exemplo, tem potencial de gerar novos negócios no valor de R$ 50 bilhões.
As empresas no Brasil devem se inspirar em ações corporativas que estão sendo colocadas em prática em diversos países e apoiar o Estado para a efetivação de soluções concretas. Uma delas é o Projeto de Lei (PL) 2524/2022 que já tramita no Senado Federal e propõe um marco regulatório para a Economia Circular do Plástico no país. Não há mais tempo para continuarmos enxugando gelo.
*Ademilson Zamboni é oceanólogo, mestre e doutor em Engenharia Ambiental pela Universidade de São Paulo. De 1995 a 2000 foi professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande na área de poluição marinha.
Fonte: O Eco