Opinião

A lição foi aprendida?

*Dalce Ricas

A Samarco tem obrigação de arcar com a recuperação de tudo que causou com a ruptura da Barragem de Fundão. Mas isso, nem de longe, significa salvar o rio Doce. Esta tarefa depende do poder público – governos federal, estadual e municipal, do Legislativo – e da sociedade, que é cúmplice, omissa e também responsável por sua agonia. A população das cidades que foram atingidas pela lama da Samarco, ficaram sem água ou sofreram prejuízos, com exceção provável de alguns "gatos-pingados" e ambientalistas "chatos", enxerga o rio como depósito de esgoto e lixo.

Não tivemos acesso ao plano de recuperação apresentado pela Samarco. Mas sabemos que o rio Doce e a maior parte de seus afluentes já estavam em processo de agonia antes da ruptura da barragem, em função de: mau uso do solo, representado pelo alto nível de erosão que entupiu seu leito de terra; destruição de suas matas ciliares e nascentes; ocupação urbana desenfreada; lançamento de esgotos domésticos e industriais; lixo; e construção sequencial de barragens para geração de energia elétrica. Estruturas que ameaçam matar o rio Santo Antônio, um dos poucos afluentes que mantêm qualidade ambiental. Além de tudo isso, estão na lista de ameaças ao rio Doce a abertura e manutenção de estradas por prefeituras e particulares, agricultura, minerações etc.

A lama da barragem obviamente foi um duro e decisivo golpe nesse processo de morte. Mas atingiu muitas áreas que, sob ponto de vista ambiental, já estavam degradadas – como as margens do rio Doce, onde a lama está agora depositada.

É preciso então saber se a recuperação consistirá em voltá-las à condição de antes da lama. Ou se elas serão realmente recuperadas com plantio de mata ciliar. A segunda opção esbarra na concordância dos proprietários rurais que ocuparam as margens para atividades agrícolas ou criação de gado. E a empresa não pode obrigá-los a aceitar o plantio, que prevê, no mínimo, restrições de uso. Se o governo quer realmente recuperar o rio Doce, o que duvido, a oportunidade deveria ser aproveitada. Mas, se assim for, terá de adotar medidas diversas e até conflitivas com os proprietários. Para a empresa, retirar a lama é provavelmente mais fácil e mais barato do que recriar a floresta que protegia as barrancas do rio contra desmoronamento e criava condições para a vida aquática e terrestre.

A recuperação da fauna terrestre, que foi duramente atingida, principalmente nas áreas de encosta onde ainda existiam ambientes naturais como florestas, é um ponto fundamental.

Caminhos a seguir

Penso que não há muito que fazer em termos de diagnosticar o tamanho do impacto. E mesmo se é possível questionar a utilidade disso. Pragmaticamente, a Samarco deve assumir compromisso, com projeto executivo completo, incluindo monitoramento de resultados e proteção contra incêndios, de recriar esses ambientes e transformar a área em unidade de conservação de proteção integral. Se as terras não forem de sua propriedade, deve comprá-las. Como são impróprias para atividades econômicas pela declividade, qualidade do solo, áreas de ocorrência de Mata Atlântica protegidas por Lei, o custo é baixo. Penso também que as barragens devem ser definitivamente encerradas, com recuperação e anexação às unidades de conservação propostas.

A recuperação da fauna aquática é fundamental e depende de fatores pouco controláveis. É preciso aguardar e monitorar a sedimentação e dispersão da lama ao longo de seu leito e no mar. A proteção de afluentes, principalmente o rio Santo Antônio, é ação indispensável na recuperação. Será a partir deles que o Doce será recolonizado. Ele é um rio de piracema e o maior berçário de reprodução da bacia. Também não é demais lembrar: se a Semad conceder licença para construção das Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHS) em "cascata" projetadas para ele, adeus fauna aquática! Adeus, recuperação do Rio Doce! Adeus, "demagogia ambiental"!

Na verdade, o verbo "recuperar" é impróprio. O correto é "paralisar" a degradação. Recuperar suas matas ciliares, proteger nascentes e afluentes que o alimentam, recuperar os milhares de hectares de terra que se transformaram em deserto por causa do desmatamento, fogo e super pastoreio, agricultura em encostas, tratar esgotos e não jogar lixo é tarefa gigantesca, desafiadora, longa. Mas possível.

Retirar a terra que durante séculos entupiu o leito do rio Doce devido ao mau uso do solo e a lama que desceu da mineração e reduziu sua profundidade média para 90 cm é impossível. Mesmo assim, continua sendo um rio; e sua água, vital para as populações humanas que vivem em sua bacia, mesmo sem ter consciência ou preocupação com ele.

Há muitos atores sérios atuando nessa discussão. Mas seu número é bem menor que o dos oportunistas que enxergam nos recursos que a Samarco está aportando ou será obrigada a fazê-lo a chance de ganhar dinheiro ou desviá-lo para outros fins. Não deixar "um tostão" nas mãos do governo do Estado, da União e das prefeituras, criar instituição privada para administrá-los, com espaço institucional para acompanhamento pela sociedade, são parâmetros para acreditarmos que a tragédia causada pela Samarco servirá realmente de lição neste país.

E o governo do Estado e a União teriam de garantir a execução das ações ambientais a serem realizadas, pois lhes cabe fazer cumprir a lei. Mas, alguém acredita que Fernando Pimentel considera que salvar o rio Doce é "política de Estado"? Que contrariará interesses mesquinhos de ruralistas, prefeitos, políticos etc?

Importante: essas interrogações valem para qualquer outro governo, de qualquer partido.

*Dalce Ricas é superintendente executiva da Amda

Fonte: revista Ecológico