Opinião

Mudanças do clima afetam cultura do feijão no Ano Internacional das Leguminosas

*Amelia Gonzalez

"Dharma" é um conceito indiano, não limitado às religiões, e que se entrelaça com a cultura daquele país sob vários aspectos. No Hinduísmo significa "o jeito certo de viver"; no Budismo significa "lei e ordem do cosmos". Em Jainismo se refere à transformação moral dos seres humanos, e para os Sirkhs significa "caminho da retidão". Etimologicamente, a raiz da palavra indica apoiar, manter, carregar. "Dharma" mantém, suporta a família humana na Terra, incorpora, enfim, o princípio da relação dos humanos com a natureza e com as diversidades. Através do "dharma", os indianos percebem os alimentos como criação, fazendo parte do ciclo da vida. Bons alimentos são até medicinais, e a tarefa maior é cultivá-los e distribuí-los com justiça.

O oposto do "dharma" é "adharma", que significa a violação das leis ecológicas do planeta e todos os danos provocados pelos humanos, independentemente da raça, do gênero, da idade ou da classe social. Tudo aquilo que nos separa da natureza e todas as ações que conduzem a uma desintegração da sociedade e dos ecossistemas são "adharma".

Essas informações estão no artigo "Dharma of Food", escrito pela indiana Vandana Shiva, criadora do Banco de Sementes em seu país, para a revista "Resurgence & Ecologist". Em seu texto, Shiva adverte: mesmo com toda herança cultural secular, as orientações do "dharma" sobre os alimentos têm sido, até mesmo na Índia, atravessadas por uma imposição de ferramentas tóxicas e pelo setor industrial da agricultura. A luta principal de Vandana Shiva, para tentar acabar com a fome no mundo, é focada contra as sementes geneticamente modificadas. A indiana quer preservar o direito de pequenos produtores poderem cultivar suas próprias sementes e, com isso, assegurar que se tenha comida para todos. Um jeito de respeitar o conceito "dharma" na agricultura.

A beleza dessa filosofia, que tempera a sabedoria tradicional de um povo essencialmente místico com dados reais de uma civilização que tem respeitado pouco o ecossistema, convida a refletirmos, cada vez mais, sobre como o homem está cultivando a terra para tirar dela o alimento.

Li na segunda-feira (25) uma reportagem no jornal "Valor Econômico" com a notícia de que o Instituto Brasileiro do Feijão (Ibrafe) alerta para o fato de que vai haver uma espécie de "apagão" de feijão no país. O arroz também precisará quase dobrar a importação nesse ano de 2016. Tudo isso porque as chuvas acima da média na região Sul do país, maior produtora dos dois grãos, provocaram desastre nas culturas.

A situação do feijão, segundo a reportagem de Fabiana Batista, é mais grave. O Ibrafe está prevendo que haverá escassez do produto no Brasil numa janela de dois meses, entre 20 de fevereiro e 20 de abril. Nesse tempo, segundo a organização que reúne a cadeia produtiva do grão, vai haver um aumento absurdo de preços. Feijão e arroz, como bem lembra o texto, são a base da alimentação do povo brasileiro. As chuvas que estão assolando a região onde eles são mais cultivados são, como os cientistas comprovam, características de uma era que está convivendo com mudanças drásticas do clima por causa da ação do homem. Pouco respeito ao ecossistema, pouco respeito aos homens que não terão como pagar pelo feijão, pouco respeito às lições do "dharma".

Por coincidência, li também que a ONU decretou que 2016 será o Ano Internacional das Leguminosas (leia aqui). Dessa forma, a organização pensa em chamar a atenção, com campanhas, para o poder das proteínas e os benefícios à saúde que elas podem trazer para os humanos. As leguminosas mais conhecidas são feijão, a lentilha, a ervilha, a fava, o grão de bico e a soja. São alimentos mais consumidos nos países em desenvolvimento do que nos países ricos.

Segundo a FAO, agência da ONU que cuida de alimentos, as leguminosas representam uma fonte alternativa de proteínas mais barata do que as encontradas nas carnes. Elas também têm o dobro das proteínas do trigo e o triplo do arroz. Para o diretor geral da FAO, José Graziano da Silva, "as leguminosas são colheitas importantes para a segurança alimentar de grande parte das populações, em particular na América Latina, África e Ásia".

Ocorre que justamente nessas regiões citadas por Graziano, as leguminosas, além de serem parte da dieta tradicional, são produzidas por pequenos agricultores. Ocorre também que esses pequenos agricultores, na maioria das vezes, têm uma relação conflitada com as grandes empresas distribuidoras dos alimentos. Segundo a reportagem do "Valor Econômico", nas gôndolas dos supermercados o preço do feijão já subiu por conta das chuvas. Agora em janeiro, que seria o mês de maior vantagem da colheita, o preço da saca subiu 30% – do patamar de R$ 170 para R$ 220 . O gerente geral da Josapar, dona da marca Tio João, declarou ao jornal que a escassez será grande. E acrescentou: "Num momento como esse a indústria é obrigada a repassar o aumento".

No vídeo "Corda no pescoço", produzido pela equipe da ONG Repórter Brasil , pequenos avicultores e plantadores de tabaco dão seu depoimento sobre a relação com as grandes empresas para as quais eles vendem seus produtos. É de se supor, a julgar pelos depoimentos no documentário, mesmo sendo de setores diferentes, que tal repasse dos preços defendido pelo executivo da empresa distribuidora de feijão não vai chegar a quem planta e colhe a leguminosa na ponta da cadeia.

No livro "História das agriculturas do mundo", editado pela Unesp, o cenário de desigualdade entre o agricultor e a grande indústria, em todos os setores, é descrito com realismo. Os autores – Marcel Mazoyer e Laurence Roudart – sugerem o que seria a melhor maneira de se promover agriculturas camponesas sustentáveis, capazes de assegurar em quantidade e qualidade a segurança alimentar de 7 bilhões de pessoas:

"É preciso, antes de tudo, garantir aos camponeses preços elevados e estáveis para que eles possam viver dignamente de seu trabalho: é o preço de nosso futuro. Para essa finalidade, é necessário implantar uma organização mais sustentável, com grandes mercados comuns agrícolas regionais", escrevem, citando outras propostas que vão desde reformas agrárias em países que deixam a terra ser monopolizada por latifundistas até um imposto fundiário diferencial para diminuir a desigualdade no campo.

Os próprios autores, no entanto, admitem que algumas propostas "vão de encontro ao pensamento econômico e político dominante". Seria preciso, refletem, uma radical mudança de práticas e valores, onde o "business as usual não tenha lugar", para promover uma relação verdadeiramente sustentável do homem com a terra. Diversificar mais a produção, para que não se concentre numa única região, por exemplo, pode ser um caminho para evitar o "apagão" de uma leguminosa tão importante para a saúde dos humanos. Mas há outros.

*Amelia Gonzalez é jornalista, editou o caderno Razão Social, no jornal O Globo, durante nove anos, e nunca mais parou de pensar, estudar, debater e atualizar o tema da sustentabilidade, da necessidade de se rever o nosso modelo de civilização. Em pauta, questões ligadas à economia, ao meio ambiente, à sociedade.

Fonte: G1