Vamos comer insetos?
*Marc Dourojeanni
Um recente e volumoso relatório [1] promovido pela FAO analisou meticulosamente o potencial e as alternativas que oferecem os insetos para suprir as demandas atuais e futuras de alimento para a humanidade. O documento é muito alentador, pois demostra que realmente é possível que os bichos com seis patas possam suprir boa parte das nossas demandas de comida. De outro lado é importante levar em conta que os principais autores do informe são holandeses, uma nacionalidade que nunca se distinguiu pelo refinamento da sua cozinha e, claro, a proposta é perfeitamente coerente com o fato.
O relatório começa lembrando que membros de muitas culturas comem e gostam de comer insetos e também de comer aranhas e escorpiões há milênios e que a única exceção a esta quase regra são os ocidentais, ou seja, os europeus e os americanos. Precisa, corretamente, que os americanos pré-colombianos comiam e ainda comem insetos, especialmente no México e na Guatemala, e que o mesmo é comum entre os índios amazônicos. Na Ásia e na África a prática é tão difundida que até já existem espécies raras devido ao fato e que, em vários países, foram emitidas normas protetoras, incluindo a proibição para a coleta de determinadas espécies.
A proposta dos autores é, basicamente, proceder à domesticação de algumas espécies e produzi-las em grandes quantidades, como no caso do gusano da seda e das abelhas. Um dos insetos já testados para esse fim é um tenebrionido (chamado assim pelo seu aspecto tenebroso), ou seja, um besouro pouco simpático cujas larvas seriam processadas como alimento. Embora não sejam insetos, já existem ampla criação e comércio de minhocas, que inclusive são consumidas como macarrões. Exceto no caso das espécies de elevado valor "gourmet", que se consumiriam in natura, ou mantendo seu aspecto original, as produzidas massivamente seriam transformadas em farinhas grossas ou finas ou em pastas de diferentes propriedades e qualidades que possivelmente receberiam sabores palatáveis para as maiorias.
Já foi demonstrado que a composição química dos insetos é muito rica em proteínas e lipídeos de qualidade, em micronutrientes e que, em geral, seu aporte à nutrição humana pode ser ótimo.
Proposta não é nova
Nada do que diz o trabalho é novo para a ciência. O autor desta nota, um entomólogo aposentado, participou nos anos 1960 e 1970 de algumas degustações onde todos os pratos eram insetos ou feitos na base destes, organizadas pela Sociedade Peruana de Entomologia.
Concluída a sessão, considerada um tanto masoquista por quase todos, íamos jantar de verdade em um restaurante "normal". No Peru, como no Brasil, são muitos os insetos consumidos pelos indígenas, destacando pelo seu bom sabor as rainhas e machos torrados das saúvas do gênero Atta, capturados no momento dos voos nupciais e, também, as suculentas larvas do besouro Rynchophorus, que vive nas palmeiras. As citadas formigas são equivalentes ao amendoim que acompanha os tragos nos bares de algumas regiões da Colômbia e as grossas larvas do besouro equivalem a linguiças frescas. Mas, em geral, na América do Sul não existe a amplitude do hábito de comer insetos que é tão comum no México ou em outras regiões tropicais e subtropicais. Criar insetos para alimentar outros animais também é praticado há séculos e, na atualidade, já tem dimensões quase industriais em alguns países.
Comer insetos como vingança
De outra parte, o fundamento ecológico da proposta é bem conhecido. A biomassa de insetos no mundo é bem maior que a de qualquer outra classe animal e, ademais, eles são os nossos principais competidores na hora de comer. As denominadas pragas, como a recém-chegada ao Brasil Helicoverpa armigera (uma mariposa de lagartas vorazes que ataca quase tudo, principalmente as culturas de algodão, soja e milho), podem ser demolidoras para a economia e provocar fome em amplas regiões. As pragas consomem de 20 a 40% do que o homem planta e pretende conservar. Por isso, comê-las é tentador. Pelo menos assim a humanidade se ressarce um pouco pelo dano sofrido. As pragas de gafanhotos da África sempre foram colateralmente aproveitadas para a alimentação das suas vítimas, e as baratas podem ser transformadas em deliciosas sobremesas da culinária chinesa.
Não obstante, a proposta enfrenta muitos problemas. Apesar de que os insetos possuem uma biomassa colossal e que "roubam nossa comida" não é nada fácil coletá-los na forma massiva que seria necessário para nos alimentar em proporção significativa. Para isso, se requereria algo como um aspirador gigante que absorva uma nuvem completa de gafanhotos ou que tire com uma passada todas as lagartas que atacam nossos cultivos. Obviamente isso não existe, e se tal máquina fosse construída ainda faltaria inserir nela o mecanismo para discriminar entre insetos daninhos (as pragas) e insetos benéficos (seus parasitas e predadores). Pior ainda, cada inseto e cada parte do seu corpo tem uma composição química diferente, incluindo alguns que são nocivos para os humanos ou para alguns deles (alergias) e, por isso, devem ser coletados separadamente.
Ademais, na atualidade, muitos desses bichos como os gafanhotos estão profusamente regados com pesticidas que apenas os engordam, já que criaram resistência aos mesmos. Mas podem matar os que os comem, pois os venenos se acumulam no ápice da pirâmide alimentar.
Por isso mesmo é que os autores propõem, como solução, a domesticação e criação de insetos. Assim é possível escolher as espécies mais adequadas para a alimentação humana e procriá-las massivamente, em condições higiênicas severamente monitoradas. O produto final poderia ser, como dito, uma farinha que se adiciona a outros alimentos que se preparam em casa ou, mais provavelmente, que se incorpora a alimentos processados industrialmente. No final, como no caso dos transgênicos, o cidadão não sabe bem o que está comendo, por isso não dá queixa.
Relatório é falho no item sustentabilidade
Onde o relatório da FAO, que é muito bem ilustrado especialmente para os que têm um estômago forte (já são bem conhecidas as brochetes de escorpião chinesas), não cumpre com as expectativas é com relação ao tema da sustentabilidade. Com efeito, se a criação de insetos se faz na base de vegetais ou de resíduos vegetais ou animais, que o ser humano de igual forma que os insetos podem comer diretamente, qual é a lógica de usar um intermediário como eles, os insetos? Todo intermediário, todo elo adicional na cadeia trófica é um estorvo. Os complementos nutricionais podem ser providos de muitas formas mais convencionais. Os humanos, quando desceram das árvores, passaram a consumir a cada século e a cada milênio mais e mais vegetais. Então … Por que não continuar com a tradição? Embora seja verdade que os insetos possam ser mais eficientes para transformar a biomassa vegetal em carne ou "carne" (já que o termo não se aplica por igual a um bife no prato que a um prato de vermes) não deixa de ser certo que, neste caso, ser vegetariano é mais eficiente e menos traumatizante.
De outra parte, os mares também são uma alternativa que oferece boas opções de alimentação básica, pois o fito-plâncton ou o zoo-plâncton podem ser usados quase diretamente. Em conclusão, tudo indica que os insetos apenas teriam um papel verdadeiramente importante na alimentação humana em um cenário de gravíssima crise social, do tipo "sobrevivência pós-conflito nuclear global".
O autor não é um intérprete confiável deste interessante relatório. Apesar de sua simpatia pelos insetos, sua origem francesa não permite que ele seja equânime. Nada, nenhuma mosca ou mosquito, nem nenhuma proposta de bife à base de farinha de inseto deve estorvar seu previsto muito tenro filé mignon acompanhado de uma bela salada de alface fresca com vinagrete ao azeite de oliva. Bom proveito!
[1] Edible insects: Future prospects for food and feed security, 2013. Food and Agriculture Organization of the United Nations, Rome FAO Forestry Paper No. 171.
*Marc Dourojeanni é consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interamericano de Desenvolvimento e fundador da ProNaturaleza.
Fonte: O Eco