Fast fashion contribui para crimes ambientais no Cerrado

As vitrines das lojas exibem roupas frequentemente vendidas como “sustentáveis”, mas que escondem um rastro preocupante: violência e degradação ambiental. Um relatório da organização britânica Earthsight revelou como o setor fast fashion (moda rápida, em português) contribui para crimes ambientais no Cerrado, um dos biomas mais biodiversos e ameaçados do mundo.
De acordo com o levantamento Fashion Crimes, publicado neste ano, gigantes da moda, como H&M e Zara, utilizam algodão com rastro de desmatamento, grilagem de terras e a graves violações de direitos humanos no Cerrado baiano.
A rota do algodão
A investigação da Earthsight detalha a rota do algodão extraído de áreas desmatadas no Cerrado. Primeiramente ele é enviado a fábricas na Ásia, como a PT Kahatex, na Indonésia, e o Jamuna Group, em Bangladesh. Essas fábricas, por sua vez, abastecem marcas globais com milhões de peças de vestuário, incluindo as líderes de fast fashion H&M e Zara, do grupo Inditex.
Em 2023, a Zara europeia faturou mais de 235 milhões de euros com roupas de algodão oriundas dessas fábricas, de acordo com o relatório. Contudo, muitas dessas peças chegam às lojas com um “selo verde”, o que mascara a sua verdadeira origem.
Falhas no sistema de certificação
O selo Better Cotton (BC), amplamente associado à sustentabilidade, foi duramente criticado no relatório. A investigação aponta que o algodão de áreas desmatadas ou em disputas fundiárias continua sendo certificado como sustentável. No Brasil, o programa é administrado pela ABRAPA, associação dos produtores de algodão, o que gera, segundo a Earthsight, um conflito de interesses evidente.
Apesar da promessa de implementar um sistema de rastreabilidade mais eficiente, a Better Cotton ainda não é capaz de garantir que o algodão certificado esteja livre de irregularidades. Mesmo assim, grandes marcas continuam adotando selo, sem implementar políticas mais rígidas para controlar sua cadeia produtiva.
O impacto do algodão no Cerrado
O Cerrado, conhecido como a caixa d’água do Brasil, abriga 5% da biodiversidade global e ocupa 25% do território nacional. Porém, é também um dos biomas mais ameaçados. Desde 1985, a porção baiana do bioma perdeu quase 25% de seus 9 milhões de hectares originais para a agricultura industrial, especialmente a de algodão e soja.
O desmatamento na savana brasileira dobrou nos últimos cinco anos, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Em 2023, houve um aumento de 43% nas taxas de destruição em relação ao ano anterior. Companhias como Grupo Horita e SLC Agrícola lideram a expansão dos cultivos de algodão na região, acumulando multas ambientais.
Entre os principais impactos ambientais do cultivo do algodão, estão:
- Consumo de água: são necessários 10 mil litros de água para produzir 1kg de fibra de algodão. No oeste da Bahia, o agronegócio consome quase 2 bilhões de litros por dia, o necessário para abastecer aproximadamente 12 milhões de pessoas.
- Uso de agrotóxicos: o algodão é a cultura que mais utiliza agrotóxicos, contaminando solos e águas.
- Emissão de carbono: o desmatamento no bioma gera emissões anuais equivalentes à 50 milhões de carros.
Segundo os pesquisadores, se o ritmo atual de destruição continuar, o bioma perderá mais de 1.100 espécies até 2050. A queda no volume dos rios, como o Xingu e o Trombetas, poderá atingir 34%, uma redução equivalente a oito vezes o volume do rio Nilo.
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Além do impacto ambiental, o agronegócio no Cerrado é palco de conflitos violentos com geraizeiros, comunidades tradicionais que habitam a região há séculos. Relatos de expulsões forçadas, intimidação e roubo de gado por pistoleiros vinculados a grandes fazendas são frequentes.
“Membros de comunidades que viveram em harmonia com o Cerrado por séculos estão sendo expulsos de suas terras, proibidos de exercer suas atividades de subsistência, sujeitos a vigilância, intimidação e roubo de gado por pistoleiros das fazendas”, descreve o relatório.
Caminhos para a mudança
O relatório da Earthsight enfatiza a necessidade de uma regulamentação mais rigorosa por parte dos governos. Iniciativas como o Regulamento sobre Desmatamento da União Europeia (EUDR) e a Diretiva de Devida Diligência em Sustentabilidade Corporativa (CSDDD) são passos importantes, embora ainda apresentem lacunas.
No caso do EUDR, o algodão sequer está incluído entre as matérias-primas cobertas pela legislação, permitindo que produtos associados ao desmatamento continuem a circular livremente.
Uma tentativa do governo federal de conter o desmatamento no Brasil é através do PPCerrado. Entretanto, há algumas falhas ao focar apenas no desmatamento ilegal, permitindo a destruição de grandes áreas continuem de forma legalizada.
A Earthsight propõe que as gigantes da moda, como Zara e H&M, adotem políticas mais rígidas para assegurar que seus modelos de produção não causem a destruição do Cerrado e de seus povos. Além disso, a Better Cotton deve garantir a rastreabilidade e o controle eficientes das cadeias produtivas, aponta o levantamento.
“Legisladores nos países consumidores devem implementar leis fortes com aplicação rigorosa. Enquanto isso, os compradores devem pensar duas vezes antes de comprar sua próxima peça de roupa de algodão”, alerta o diretor da organização, Sam Lawson.
Após as conclusões do relatório, a agência Earthsight publicou as respostas das empresas Horita, SLC, Abrapa, Bergamaschi e Estrondo. Confira.