Opinião

Marco Infernal

*Jandira Feghali

O debate sobre o direito à terra pelos povos indígenas não é recente. Em relação aos direitos territoriais, as Constituições de 1934, 1937, 1946, 1967/1969 tinham como foco o respeito à posse das terras nas quais os ditos “silvícolas” exerciam a “posse das terras onde se achem permanentemente localizados”.

Mas o marco decisivo na inovação das relações institucionais do Estado com os Povos Indígenas ocorreu com a promulgação da Constituição de 1988.

É o artigo 231 da Constituição Cidadã que reconhece “a organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Este mesmo dispositivo alterou a base institucional de relacionamento do Estado com os Povos Indígenas, passando a prever o princípio do respeito à diversidade étnica e cultural.

Mas, a disputa sobre as terras indígenas e a necessidade legal de demarcá-las prosseguia, com registros nefastos de graves conflitos e assassinatos de lideranças indígenas. No Poder Legislativo, os interesses anti-indígenas sempre estiveram presentes.

Como expressão deste embate, em 2000 foi apresentada proposta de emenda à Constituição (PEC 215) com o propósito de determinar que a demarcação das terras indígenas passasse a ser competência do Congresso Nacional.

Sobre o tema o Ministro Edson Fachin declarou em seu voto no julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365, que: “Em primeiro lugar, incide sobre o disposto no artigo 231 do texto constitucional a previsão do artigo 60, § 4º da Carta Magna, consistindo, pois, cláusula pétrea à atuação do constituinte reformador, que resta impedido de promover modificações tendentes a abolir ou dificultar o exercício dos direitos individuais e coletivos emanados do comando constitucional do artigo citado.”

Superada esta questão, estamos, 23 anos depois, enfrentando um drible a este entendimento. Pretende-se, por projeto de lei ordinária, atingir o objeto da PEC 215, desta vez sob o argumento de tratar-se de mera regulamentação do artigo 231 da Constituição.

Refiro-me ao PL 490/2007, em especial ao Substitutivo apresentado pelo Relator na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, que ganhou rito de urgência numa das votações mais absurdas da Câmara dos Deputados.

Não se trata mais de apenas deslocar a competência da União para a demarcação, o Substitutivo pretende fazer valer a tese do marco temporal, ou seja, desconsiderar o texto constitucional para estabelecer que os direitos originários às terras que tradicionalmente ocupam, só valem se estas terras estiverem ocupadas, em caráter permanente pelos povos indígenas, no dia 5 de outubro de 1988, data em que a Constituição foi promulgada.

Está mais para tese de marco infernal. Imaginem vocês que, em 1988, o texto tivesse inovado em algum direito (o que o fez em muitos), e décadas depois, alguém questionasse que aqueles direitos ali inscritos só atenderiam quem neles se enquadrasse no exato momento de sua promulgação.

Um absurdo completo, além de denotar uma concepção anti-jurídica e conflitante com toda a história brasileira da aplicação das normas. Se uma comunidade indígena não estava na posse da terra que tradicionalmente ocupava, é necessário investigar e verificar quando este fato ocorreu, em que circunstâncias.
O Brasil sempre conviveu com disputas desproporcionais pela terra o que expulsou muitas etnias de suas terras tradicionalmente ocupadas. E agora, querem que sejam duplamente penalizadas. Já o foram pela expulsão e pagarão com a perda de um direito se prevalecer a tese do marco temporal.

Neste sentido, vale registrar nota do Ministério Público Federal que alerta que, a tese do marco temporal, se aprovada, “consolidaria inúmeras violências sofridas pelos povos indígenas, como as remoções forçadas de seus territórios, os confinamentos em pequenos espaços territoriais e os apagamentos identitários históricos”.

Lembro ainda que o Brasil é signatário da Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais que estabelece que os governos deverão: “consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente”.

O Brasil, portanto, vê-se obrigado a adequar a legislação do país, isso inclui impedir que legislações futuras colidam com o determinado pela Convenção.

Mas, lamentavelmente, não é isso que estamos vendo acontecer. E os impactos vão muito além do previsto. Em nota, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB, ressalta que “os serviços ambientais prestados pelos Povos Indígenas com a conservação das vegetações nativas, tem consequências diretas no regime de chuvas, que é um fator essencial para a manutenção da capacidade produtiva do país. Dessa maneira, a não demarcação de Terras Indígenas têm o efeito de acelerar as mudanças climáticas, pondo em risco a soberania alimentar e nutricional de todos os brasileiros”.

Meu voto e minha voz refletirão o que considero meu dever como parlamentar. Não rasgarei a Constituição Federal. Não atacarei o direito dos povos indígenas.

Respeitarei seus direitos e, mais do que isso, lutarei para que nunca seja aprovada e entre em vigor uma legislação que não ouviu os povos indígenas para ser votada. Porque, se os ouvissem, não ousariam sequer propor tal modificação.

* Jandira Feghali é médica cardiopediatra, feminista e atual Líder do PCdoB. Relatora da Lei Maria da Penha, autora da Lei Aldir Blanc 2 e está em seu oitavo mandato na Câmara Federal pelo PCdoB do Rio de Janeiro. É uma das principais vozes em defesa da democracia dentro do Parlamento.

Fonte: Mida Ninja