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Opinião

Auschwitz na Amazônia?

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*Marc Dourojeanni

A intenção de extinguir os Yanomami bem como a crueldade demonstrada são compatíveis os horrores vividos pelas vítimas dos horrendos campos de concentração nazistas.

A visão, ampla e reiteradamente exibida dos indígenas Yanomami, todos eles, sejam meninos, mulheres ou homens, literalmente morrendo de fome e de enfermidades, em todas as notícias do Brasil, não pode deixar de evocar as vítimas dos horrendos campos de concentração nazistas da Segunda Guerra Mundial. Mais ainda porque a revelação da magnitude da tragédia aconteceu no meio da celebração da Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto (27 de janeiro).

Poder-se-á argumentar que o caso não é comparável. Que os Yanomami são poucos se comparados aos milhões de judeus e outras pessoas assassinadas pelos nazistas ou que a motivação neste caso é a ambição e não o ódio. Mas isso é uma meia verdade.

Os Yanomami são um povo único, isolado, de pouco mais de vinte mil pessoas e, neste caso, o desprezo e o ódio racial foram também motivos do massacre que, como bem apontado por muitos, reveste todas as características de genocídio. A diferença é que o planejamento frio e metódico dos oficiais nazis foi substituído pelo caótico comportamento delinquencial.

Porém, a intenção de extinguir esse grupo de seres humanos bem como a crueldade demonstrada foram iguais. E pior, pois neste caso o crime contra a humanidade foi feito em aberta violação da Constituição e da legislação do Brasil e, apesar da existência de várias instituições para evitá-lo e de múltiplos alertas públicos de que o fato estava ocorrendo, tudo o que nem existia ou era possível na Alemanha da época.

A Terra Indígena Yanomami foi criada em 1989 e demarcada em 1992 com 9,7 milhões de hectares e está localizada nos estados do Amazonas e de Roraima, na fronteira com a Venezuela. Inclui a metade do Parque Nacional Pico da Neblina e algumas outras áreas protegidas federais e estaduais.

O histórico legal do espaço ocupado por estes indígenas e por esta reserva tem sido muito conturbado. Vivem nelas oito povos, incluindo os Yanomami, distribuídos em cerca de 350 comunidades. O povo de menor população na área é a dos índios Ye’kwana, com apenas pouco mais de 800 pessoas.

A extração de ouro nesta Terra é antiga e parte dela tem sido ocupada por colonizadores. No final da década de 1980, cerca de 40 mil garimpeiros invadiram o território Yanomani e desencadearam uma crise sanitária que dizimou cerca de 14% da sua população. O Estado interveio e reduziu a pressão, porém não a eliminou e voltou a crescer gradativamente.

Em 2000 já tinham sido desmatadas mais de dez mil hectares, que aumentou para mais de 24 mil hectares em 2014 e muito mais na atualidade. Em 1989, os Yanomami eram cerca de dez mil, mas a sua população, apesar dos problemas, teria aumentado até 23 mil pessoas em 2016.

Não se pode dizer que durante os governos de Lula e Dilma a situação dos Yanomami foi boa. Na realidade, apesar de alguns esforços isolados e descontinuados, o bem-estar desta população vem se degradando desde que foram contactados e especialmente desde a construção da estrada perimetral norte nos anos 1970.

Mas a situação que teve sua crise maior nos anos 1980 e em princípios de 1990 tinha sido mais ou menos controlada e meio esquecida até que voltou, com força, em 2020 e especialmente em 2021, ano em que o garimpo aumentou em 46%, afetando cerca de 270 das comunidades indígenas do território. Obviamente esse impacto foi desigual em cada setor da reserva em função da presença do minério e do acesso.

Não há dúvida nenhuma de que apenas com a chegada do governo Bolsonaro, a pressão dos garimpeiros sobre a Terra Yanomami aumentou drasticamente, com uma invasão que alcançou mais de 20 mil indivíduos. Todos são homens, muito bem apetrechados, com serviço de aviões leves com base em pistas de pouso improvisadas, uma frota de helicópteros, embarcações a motor, maquinaria de extração e provisionamento regular de comida e combustível e, ademais, muito bem armados e dispostos a tudo.

Para piorar o quadro, eles costumam se instalar perto dos centros comunais indígenas, pois de uma parte, estes se situam nos sítios topograficamente mais adequados e, às vezes, já têm pista de pouso. Também têm indígenas para trabalhar e mulheres para usar e abusar.

O histórico dos massacres de indígenas perpetrados a bala e facão pelos garimpeiros é enorme, tanto como os estupros de meninas e meninos, dentre outras barbaridades. Mas, como nos campos de concentração nazi, a arma mais letal para as vítimas é a fome.

A prática do garimpo é ambientalmente diabólica. Elimina a floresta e toda a vegetação; destrói a capa fértil dos melhores solos aptos para cultivo, na beira ou na proximidade dos rios; deixa inúmeras “lagoas” com água empoçada que servem de criadouros de mosquitos, propagadores da malária e da dengue e de outra dúzia de enfermidades; destroem fisicamente o cursos de água, eliminando toda possibilidade de haver peixes; reduzem severamente a disponibilidade de água para consumo humano; água que também está contaminada com mercúrio, gasolina e óleos; impossibilita a caça para alimentação, pois os garimpeiros são também caçadores ansiosos para melhorar suas dietas. Trata-se na verdade, da destruição total do ecossistema, como as fotografias dos garimpos deixam evidente.

Pode chamar a atenção que os indígenas da Terra Yanomami, que é aparentemente tão grande, não possam, quando chegam os garimpeiros, cultivar, caçar ou pescar em outro lugar. Mas, na realidade, não o fazem porque não podem. Como explicado, parte considerável dessa terra é protegida, onde os indígenas, como todos os cidadãos, têm restrições.

De outra parte, cada comunidade tem seu lugar. Caçar, pescar e cultivar nessas terras pobres da Amazônia requer muito espaço… Eles já estão instalados no melhor lugar, que está sendo destruído pouco a pouco há décadas. E os garimpeiros, com seus helicópteros, drones e telefones celulares, estão por todo lado.

Não há, na verdade, para onde ir. Poder-se-ia acreditar, finalmente, que os indígenas armados com arcos e flechas e poucas espingardas poderiam se rebelar contra os opressores. Já tentaram e isso resultou, por exemplo, na chacina de 16 Yanomami na comunidade do Haximu em 1993.

Os garimpeiros, na sua grande maioria, são pessoas ignorantes e muitos são delinquentes e, em todo caso, são suficientemente sem escrúpulos e ambiciosos como para embarcar nessa forma extrema de ganhar a vida. O resto é feito pela pressão dos pares, cujos líderes, além do mais, podem estar ligados ao narcotráfico, ao contrabando de armas e ao tráfico de fauna silvestre.

Então, roubar, maltratar, torturar, assassinar e violar é apenas parte do jogo. Ainda mais quando sabem que o Estado está distante e vai fazer vista grossa. Mais fácil, se possível, quando o próprio presidente da nação os defende e estimula publicamente.

E, de qualquer jeito, eles têm deputados comprados e advogados bem pagos nas cidades próximas, na capital do Estado e no Congresso da República para os proteger e justificar.

Na parte da Terra Yanomani onde se encontra o miolo da situação atual, a crise sanitária resultou, nos últimos quatro anos, na morte de 570 pessoas, na sua maioria crianças, por desnutrição e outras causas evitáveis, das que só em 2022 morreram 100. A desnutrição atinge mais de 50% das crianças da reserva.

Malária, verminose, pneumonia dentre outras enfermidades que podem ser combatidas, pululam. Estima-se que 11 mil indígenas da Terra Yanomami têm malária. E o envenenamento por mercúrio é geral.

Neste momento, cerca de 700 indígenas estão sendo atendidos em casas de apoio, a maioria crianças gravemente desnutridas, das quais 60 seguem em unidades de tratamento intensivo após serem resgatadas. E o número de falecidos é estarrecedor. As fotografias não mentem.

Ante a chegada tardia de assistência médica, o que vimos na televisão foi um desfile de seres com a pele diretamente sobre os ossos, incapazes de se levantar e caminhar… Auschwitz na Amazônia. Ou, se se quer ser regionalista, a renovação dos horrores da tão triste época da borracha.

Existe a esperança de que a versão atual da presidência de Lula aborde seriamente o tema da barbárie contra os Yanomami e permita que voltem a ser livres, como a lei dispõe. Mas, o fato é que o garimpo é um problema nacional que não está limitado às terras indígenas e unidades de conservação.

É um câncer amazônico, brasileiro e sul-americano. O mesmo problema que com variantes ocorre em todo o Brasil, por exemplo, no Pantanal, também tem exemplos trágicos no Peru, onde é particularmente grave na Amazônia, mas onde existe em todo o seu território e, assim também na Bolívia, Equador, Colômbia, Guiana e Venezuela.

E os países que não produzem ouro ilegal, como o Uruguai, o comercializam. Por isso este tema deveria ser abordado por todos os governos da região em ação conjunta, antes de que se agrave mais.

*Marc Dourojeanni é Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interamericano de Desenvolvimento e fundador da ProNaturaleza.

Fonte: O Eco