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Opinião

Pode um rio morrer? O chamado para um resgate afetivo com as águas

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*Flavia Freitas Ramos

“O Rio Doce morreu”. Foi essa a resposta dada por um amigo, quando precisou adiar uma reunião que teríamos dali a poucos instantes. Era novembro de 2015. Eu estava em Santos, no litoral paulista, e pela primeira vez ouvia sobre a tragédia que havia acontecido.

Ele estava em Belo Horizonte, Minas Gerais, onde rapidamente se organizavam mobilizações de apoio às famílias e comunidades atingidas pela tragédia.

Ecoava profundamente em mim: “o rio morreu”. Como pode um rio morrer? Durante as horas, dias e semanas seguintes eu me senti tragada pelos 45 milhões de metros cúbicos de rejeitos da barragem de mineração que colapsou no subdistrito de Bento Rodrigues, município de Mariana, em Minas Gerais.

A imprudência das empresas responsáveis gerou a morte e o drástico impacto na perpetuação da vida de quase 400 espécies, destruindo sonhos e mudando futuros. E o Rio Doce me atravessou.

Desde então, Watu (Rio Doce para o povo Krenak) me ensina sobre regeneração, afeto, ancestralidade e sobre como a vida, assim como uma bacia hidrográfica, é um entrelaçar que conecta diferentes tempos e espaços.

Há 90 anos meu avô nadava no Rio Tietê, na zona norte de São Paulo. Há 50 anos meu pai ainda remava por lá. Eu, já nasci órfã de rio: nunca pude nadar ou praticar lazer nos rios da minha cidade. A metrópole me ensinou a crescer olhando rios mórbidos com tristeza, fechando o vidro do carro para evitar o cheiro.

Enquanto outros rios se tornavam invisíveis, canalizados e escondidos abaixo de ruas pavimentadas. Em poucas décadas perdemos o direito a uma relação afetiva com os rios, enquanto os rios perderam o direito de serem livres e gerarem saúde.

Às vezes o que vemos, percebemos e experienciamos é menos rio e mais o que nós, seres humanos, rejeitamos.

Como é o rio perto da sua casa? E como era a 50 ou 100 anos atrás? Hoje continua sendo rio que flui e gera vida saudável ou é mais parecido com um esgoto? Como será em 50 ou 100 anos?

É possível e urgente criar no presente um futuro com corpos d’água vivos. O desafio é grande, porém não é tão difícil como parece nem tão fácil como gostaríamos.

Precisamos colocar em prática uma reforma relacional: nos reeducando a ter uma relação com o rio, a lagoa e o oceano como alguém da família que amamos, um ser sábio e brincalhão, e não um recurso ou alguém que rejeitamos ou exploramos.

Ao restabelecer afeto e proximidade, ampliamos a nossa capacidade de cuidar. Claro, também precisamos de políticas públicas que valorizem as águas, empresas mais comprometidas em cuidá-las e a implantação de mais tecnologias baseadas na natureza.

Só é possível avançar com governos realmente empenhados com essa causa: não apenas depositando nos cidadãos a responsabilidade da crise e da transformação, mas garantindo investimento em pesquisa, desenvolvimento, leis de proteção e fiscalização.

Repensar nosso consumo também é parte do desafio e da mudança. Por exemplo, pesquisando sobre a pegada hídrica de produtos – consumo de água na cadeia de produção; optando por alimentos sazonais, locais, orgânicos e com menos embalagens; denunciando e deixando de comprar produtos que envenenam as águas – como o ouro retirado ilegalmente da Terra Indígena Yanomami.

Há muitas iniciativas, organizações e pessoas se dedicando a práticas que nutrem uma cultura de cuidado com as águas. Conhecê-las, fazer junto e apoiá-las é fundamental para que a materialização desse futuro próspero seja possível e não seja distante.

Neste sentido, cuidar e proteger os povos-floresta é uma prioridade: essas pessoas cuidam imensamente da água de todas e todos nós. Somente há água pura com floresta em pé.

Watu, o Rio Doce, me ensinou que é um direito de toda criança poder brincar com o rio. Criança gente, criança onça, criança guaiamum, criança peixe, criança tartaruga. E claro, adulto e idoso também. Para garantir o futuro com esse direito, é hora de ativar o nosso compromisso por aprender mais com as águas de forma técnica, poética, sensitiva e objetiva.

Ter curiosidade e abertura para se reeducar, se (re)apaixonar pelas águas, ter atitude para fazer e apoiar quem já faz e cuida. Vamos honrar os mais de 70% água que vive em nós.

Regenerar-se para regenerar o rio. Regenerar as relações afetivas com os corpos d’água e regenerar a política. Regenerar a responsabilidade empresarial e as escolhas-ativas cidadãs de cuidado com o planeta para as próximas gerações.

Não precisa esperar uma barragem romper ou a crise hídrica piorar para se engajar. Um rio de longe, de perto ou de dentro de você já está te chamando pra fortalecer esse movimento, já parou para escutar?

*Flavia Freitas Ramos é educadora social e é co-fundadora da Aliança Rio Doce e do Coletivo Regenera Rio Doce que realizam diversas ações de educação, permacultura, valorização da cultura ancestral e geração de renda local.

Fonte: Ecoa Uol