Opinião

Pandemiceno: a era dos vírus

*Natalia Pasternak

Atividade humana predatória aumenta as chances de encontros com microrganismos que podem causar doenças. Isso não é uma grande novidade. A história está cheia de exemplos localizados, como o caso da febre Machupo, na década de 1950, na Bolívia. O desmatamento de áreas de floresta para o cultivo de milho destruiu o hábitat natural de uma espécie de roedor, que era reservatório natural do vírus Machupo, causador de uma febre hemorrágica grave. Os roedores, sem casa e atraídos pelo milho, invadiram as cidades, e o vírus encontrou os humanos.”

Encontros entre humanos e vírus provenientes de reservatórios animais estão aumentando, graças, entre outros motivos, ao aquecimento global. Estudo publicado na revista Nature em abril de 2022, por Colin Carlson e Gregory Albery, traz os resultados de uma simulação de territórios habitados por 3.100 espécies de mamíferos no passado, presente e futuro, e como mudanças decorrentes da alteração climática podem aumentar a probabilidade de uma sobreposição com territórios de outros mamíferos, inclusive humanos. Ou seja, quanto mais o clima muda, mais as espécies migram, e maior a chance de levarem seus vírus até a morada de outras espécies.

Essas interações facilitadas pelo aquecimento foram mapeadas e algumas áreas aparecem como mais prováveis. Regiões montanhosas são as mais preocupantes. Imagine que duas espécies vivem em lados opostos de uma montanha, e nunca se encontraram, até que começam a subir a montanha em busca de temperaturas mais amenas. Ao se encontrarem no topo, criam a oportunidade de que vírus saltem de uma para outra. Se uma dessas espécies encontra humanos, seja por sobreposição de território ou por atividades predatórias como desmatamento e caça, o vírus pode adaptar-se às células humanas.

É o que os autores chamam de Pandemiceno: a era dos vírus. Se o Antropoceno foi marcado pela dominação humana do planeta, ele dá origem ao Pandemiceno, a era onde os vírus dominam os humanos. E a simulação foi feita apenas para mamíferos, mas sabemos que aves também são reservatórios de vírus com potencial pandêmico.

Não deveríamos, portanto, estar tão surpresos com o surgimento de pandemias como a Covid-19, ou doenças consideradas raras e pontuais como os recentes casos observados de varíola de macaco (“monkeypox”). São viroses com origem em reservatório animal, nos dois casos provavelmente mamíferos, que tiveram oportunidade de encontrar a espécie humana.

Em regiões como o Sudeste da África, que abriga diversas populações de morcego, a situação pode ser ainda mais preocupante, justamente porque morcegos são reservatórios naturais de diversos tipos de vírus, e o alcance dos seus territórios, ainda que normalmente pequenos e bem definidos, pode ser facilmente alterado, já que os animais voam, aumentando a chance de encontros com outras espécies de morcego e de acessar regiões urbanas.

“Os autores apontam que é preciso identificar as regiões onde os encontros entre espécies são mais prováveis, e implementar serviços de vigilância epidemiológica. Precisamos estar preparados para novas doenças emergentes, porque, quando exploramos o planeta de forma predatória, provocamos mudanças, muitas vezes irreversíveis, que tornam essas doenças muito mais prováveis.”

Já sabíamos disso, é claro. Desde a década de 1950 sabíamos que devastar o hábitat de animais reservatórios de vírus é perigoso. Vimos o que devastar uma pequena porção de floresta fez na Bolívia, quando encontramos a febre Machupo. Não contentes com isso, resolvemos expandir a devastação para níveis planetários. E agora ficamos surpresos quando roedores, macacos e morcegos compartilham conosco suas doenças.

*Natalia Pasternak é bióloga e PhD com pós-doutorado em Microbiologia. Em 2020, tornou-se a primeira brasileira a integrar o Comitê para Investigação Cética (CSI). Atua como pesquisadora associada do ICB-USP, como professora visitante na Columbia University e como professora convidada na Fundação Getulio Vargas. É colunista do jornal O Globo, da revista The Skeptic (UK) e do site Medscape.

Fonte: O Globo