Array
Opinião

O mundo contra o tráfico de espécies silvestres: como o Brasil pode ser parte ativa

Array

*Juliana Machado Ferreira e Nádia Moraes-Barros

O mundo contra o tráfico de espécies silvestres: Como o Brasil pode ser parte ativa.

Na última semana de abril, Angola, Peru e Quênia submeteram à Comissão sobre Prevenção do Crime e Justiça Penal (CPCJP) da ONU um documento que delineia as estratégias de cooperação internacional para combater e prevenir o tráfico de espécimes de fauna e flora, no âmbito da legislação internacional. Como país detentor da maior biodiversidade do planeta, o Brasil tem aqui uma oportunidade ímpar de se posicionar e unir esforços no combate a este crime.

Atualmente, o principal arcabouço internacional para o controle do comércio de espécies de fauna e flora silvestres é a CITES – Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Silvestres em Perigo de Extinção. A CITES é uma convenção que busca proteger as espécies silvestres da superexploração pelo comércio internacional.

Contudo, para que sejam objeto da Convenção, as espécies precisam constar em um de seus anexos, que variam de I a III, conforme o grau de ameaça que o comércio internacional confere à sobrevivência destas espécies.

A biodiversidade que hoje conhecemos está representada em cerca de 1,2 milhões de espécies já descritas. Isso não quer dizer que conheçamos a fundo toda esta biodiversidade. Estima-se que haja ainda muito mais por ser descoberto.

Além disso, das espécies atualmente descritas, somente 142.500 já foram avaliadas pela IUCN (União Internacional para a Conservação da Natureza) quanto ao seu risco de extinção. Mais de 40.000 destas espécies estão hoje classificadas como ameaçadas de extinção.

A listagem CITES contém 38,700 espécies, sendo aproximadamente 5,950 espécies animais e o restante de plantas. Portanto, nem todas as espécies silvestres, ou ainda, nem todas as espécies ameaçadas de extinção figuram na lista CITES. Antes, a lista inclui espécies que já se encontram ameaçadas de extinção e/ou cujo comércio internacional descontrolado possa comprometer a sua sobrevivência.

Ademais, para que espécies sejam listadas em um dos anexos da CITES, leva-se em conta não apenas o critério técnico de ameaça, mas questões políticas e econômicas também. Desta forma, a CITES acaba por ter um alcance limitado na proteção, de fato, de espécies silvestres do tráfico internacional.

Ou seja, ainda que nos países de origem as espécies silvestres sejam protegidas por lei e que seu comércio seja controlado, uma vez que o tráfico escape à fiscalização de fronteira nacional, não há nenhuma legislação pertinente que controle ou impeça seu comércio no âmbito internacional, caso a espécie em questão não figure nos anexos CITES.

Desta forma, espécies silvestres não listadas nos anexos CITES podem ser comercializadas livremente após cruzarem as fronteiras do país onde são protegidas. Nos países importadores, as autoridades têm pouca ou nenhuma base legal para questionar tais importações do ponto de vista da conservação e legalidade na origem.

É possível, portanto, que o volume do tráfico de espécies silvestres seja ainda maior do que todas as estimativas existentes, que levam em conta as violações à CITES, mas raramente as violações às leis nacionais.

O tráfico de espécies silvestres é um crime com uma gama ampla de impactos negativos, que atingem praticamente todos os países do Planeta. Entre eles estão violações grotescas de bem-estar de animais explorados, que são seres sencientes e, muito provavelmente, conscientes, o risco de contaminação por patógenos que podem causar doenças em animais domésticos, de criação, outros animais silvestres e em pessoas, o risco de que espécies exóticas se tornem invasoras, o declínio das populações naturais, que pode levar a prejuízos para a viabilidade e sobrevivência de toda a espécie, a perda da função ecológica desempenhada pelos indivíduos, com efeitos que podem abranger o equilíbrio dos ecossistemas, e mesmo a capacidade de estocagem de carbono. Com isso, há perda de serviços ecossistêmicos, dos quais dependem a economia e o bem-estar humanos.

Por fim, o tráfico de espécies silvestres ocorre, em geral, em conjunção com outros crimes, como fraude, corrupção, associação para o crime, contrabando, sonegação fiscal, posse de arma ilegal, receptação, entre muitos outros. Não à toa, este crime é encarado atualmente como uma ameaça não apenas à conservação das espécies silvestres, mas à governança, ao Estado de Direito e, muitas vezes, até à segurança das nações.

Estimativas sobre o valor do tráfico transnacional de espécies silvestres (não incluindo madeira ilegal ou pesca não regulada, não reportada e ilegal) variam entre 5 e 23 bilhões de dólares americanos por ano. Já um relatório do Banco Mundial (2019) estima que o valor global do tráfico de espécies silvestres, incluindo madeira e pesca ilegais, seja de 1 trilhão de dólares americanos por ano. A maior parte das perdas econômicas (mais de 90%) seriam derivadas de perdas de serviços ecossistêmicos não atualmente contabilizados pelo mercado.

Agora o mundo está diante de uma oportunidade única para fortalecer o combate global ao tráfico de espécies silvestres. Na última semana do mês de Abril, Angola, Peru e Quênia submeteram à Comissão sobre Prevenção do Crime e Justiça Penal (CPCJP) da ONU o rascunho de resolução “Fortalecendo o arcabouço legal internacional para cooperação internacional para combater e prevenir o tráfico de espécimes de fauna e flora” que conclama ao UNODC – Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime – a:

  • Colher visões dos Estados-Membros sobre a oportunidade de elaborar um protocolo adicional sob a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, que trate do Tráfico de Espécimes de Fauna e Flora Silvestres, e sobre outras questões e elementos que o protocolo adicional poderia abranger;
  • Considerar os benefícios potenciais da adoção de um protocolo sob a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional que trate do Tráfico de Espécimes de Fauna e Flora Silvestres, e sobre outras questões e elementos que o protocolo adicional poderia abranger.

A Iniciativa Global para o Fim do Tráfico de Espécies Silvestres (Global Initiative to End Wildlife Crime – EWC), da qual a Freeland faz parte, apoia os países que estão liderando os esforços para esta mudança revolucionária, que alterará a forma como o mundo encara o tráfico de espécies silvestres.

É crucial que o Brasil, como país mais megadiverso do Planeta e fonte de uma grande quantidade de animais e plantas de espécies protegidas para mercados ilícitos, apoie a adoção do rascunho da resolução e, no final do ano, apoie a adoção da resolução, para que finalmente possamos caminhar para um mundo livre do tráfico de espécies silvestres.

*Juliana Machado Ferreira, Diretora Executiva da Freeland Brasil, organização que combate ao tráfico de espécies silvestres

*Nádia Moraes-Barros, Doutora em Biologia (Genética) pelo Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo.

Fonte: O Eco