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Opinião

Quando os animais também são vítimas das guerras

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*Grupo de Estudos e Pesquisa em Dimensões Humanas da Natureza (DNH)

Conflitos armados aumentam a ocorrência de tráfico e caça de animais silvestres, além de paralisar pesquisas, encurralar instituições e destruir habitat
Após poucas semanas da guerra declarada pela Rússia contra a Ucrânia, circularam notícias sobre as dificuldades de manter animais alimentados e suas instalações aquecidas em alguns zoológicos ucranianos. Houve escassez de alimentos, faltou energia, e muitos dos trabalhadores precisaram fugir porque corriam risco de perder suas vidas e de suas famílias.

Animais, seres sencientes, patrimônio genético, mantidos em cativeiro por razões diversas que incluem conservação e educação, ficaram abandonados à fome e ao frio, como consequência de uma guerra humana. Além de expor a vulnerabilidade desses animais silvestres, o fato serve como vitrine para tantos outros animais selvagens em vida livre, que em períodos de guerra lutam ainda mais pela sua sobrevivência.

Além das notícias sobre os animais dos zoológicos, vê-se pessoas e organizações se mobilizando para resgatar animais de estimação que, por diversas razões, não estão mais com seus tutores. As espécies que convivem com a nossa têm o ônus e o bônus dessa proximidade – são vistas, e decisões individuais e coletivas são tomadas uma vez que elas se tornam visíveis. E os animais que não vemos, porque seus habitats não são casas, instituições ou assentamentos humanos? Os silvestres de vida livre? Para onde voam as aves em tempos de guerra?

Com a velocidade que as notícias circulam atualmente, uma bomba explodir e armas dispararem são eventos que entram em nossas casas de imediato, ainda que aconteçam a mais de dez mil quilômetros de distância. O que seria um indesejado pesadelo, passa a desvelar-se ante nossos olhos, no café-da-manhã de cada dia: o céu na Ucrânia não mostra estrelas, mas mísseis e fumaça. As crianças choram (e os lobos uivam). Tropas avançam pressionando muitos a deixarem seus lares em busca de abrigo.

Se o conflito é no continente Africano, na floresta, gorilas são mortos para alimentar combatentes. Se o conflito é no Médio Oriente, nas montanhas, o leopardo-das-neves se esconde. Em todos esses lugares, forçado a abandonar seu posto, o guarda-parque deixa a área vulnerável ao tráfico de animais e à devastação.

A pesquisadora em área de conflito armado na América Latina não mais rastreia as pegadas da onça. Ela pode tornar-se alvo ou objeto para barganha em um resgate. Vilarejos e comunidades veem seu sustento ameaçado e sua segurança desaparecer. Governos e instituições são alterados. Tudo muda. E a tudo isso assistimos, perplexos, para dizer o mínimo.

Falar de fauna em tempos de guerra é falar sobre um aspecto das dimensões humanas que por vezes passa despercebido. Quando tratamos de conflitos, tendemos a pensar nos conflitos que ocorrem em detrimento da fauna, e não em conflitos de cunho político, econômico, religioso, expansão territorial, ou outros, e como estes impactam os recursos naturais, os ecossistemas e, por consequência, a vida selvagem. Assim como as pessoas, os animais se tornam vítimas das guerras humanas.

Porém, porque paz não é a ausência de guerra, nem guerras são eventos extremos e sim com raízes e forma de apresentação diversas – e tampouco “em tempos de guerras não se limpam armas”, é oportuno refletir sobre as dimensões humanas e as relações desses eventos com a fauna.

Estima-se que desde o início do ano, pelo menos 28 países foram afligidos por guerras e conflitos armados. Esses conflitos, que variam em motivações, magnitude, estratégias e duração (alguns duram dias ou semanas, ao passo que outros perduram por décadas), assustam! E assustam pois não só afetam o bem-estar das pessoas, mas o ambiente e a fauna.

Os efeitos colaterais dessas batalhas ao meio ambiente são de tamanha magnitude, que, em 2001, a Assembleia Geral do ONU declarou o dia 06 de Novembro como o Dia Internacional para a Prevenção da Exploração do Meio Ambiente na Guerra e no Conflito Armado.

Em um estudo publicado pela Sociedade Americana de Ecologia em 2016 (Gayonor et al., 2016), constatou-se que as táticas de guerrilha que colocam em risco a vida de milhares de civis têm impacto também nas populações de espécies selvagens. Em muitos casos, conflitos ocorrem em zonas onde espécies são protegidas por leis ou áreas de proteção.

Os conflitos armados afetam a fauna de forma direta e indireta (minas terrestres, bombas, cercas, testes militares submarinos), mas também – e de forma mais expressiva – pelos efeitos que as guerras deixam nas instituições governamentais, no movimento de pessoas (migração interna e externa) e na economia.

Em outros, acontece um aumento no tráfico de animais silvestres – inteiros ou em peças mais valiosas, como o marfim –, na extração ilegal de madeira para subsidiar práticas militares, e no uso ilegal de animais para alimentar combatentes. Fernandez-Armesto, em seu livro “Comida – Uma História”, de 2010, afirmou que “armas e cães são o capital de investimento dos caçadores” (p. 106).

Combatentes já têm as armas, e muitas vezes é tudo o que têm. Sua estratégia (ou esconderijo) os aproxima de regiões remotas, as quais muitas vezes sobrepõem com o hábitat de muitas espécies mais furtivas, como grandes primatas e felinos. O encontro pode ser casual ou intencional, mas geralmente é letal para o animal.

O uso ilegal de animais para alimentar combatentes também está associado à disrupção de sistemas econômicos e ao movimento de pessoas, combatentes de guerra ou fugindo desta, que na busca por alimentos acabam abatendo animais. O conhecimento a que fomos intensamente expostos nos últimos dois anos permite-nos temer outro impacto da guerra e desse consumo de animais silvestres: as zoonoses – doenças que, dependendo das circunstâncias, podem transformar-se em pandemias.

Alterações na economia de um país ou região em função dos conflitos também contribuem para a expansão de atividades extrativistas (pela natural redução do controle e fiscalização e/ou pelo aumento da demanda de determinados recursos, madeireiros ou minerais, para uso das forças combatentes ou como fonte de financiamento da guerra), e a diminuição de empregos e iniciativas vinculadas à conservação e ao ecoturismo. Quando esses conflitos ocorrem próximos a áreas protegidas, como parques nacionais, por exemplo, o trabalho de pesquisa, conservação e patrulhamento de atividades ilegais é impactado.

Não estamos aqui para discutir os fatores que levam às guerras, mas para refletir que as dimensões humanas da natureza perpassam todas as atividades humanas. Sentimentos, emoções, crenças, normas sociais, atitudes, ideologias… são elementos que guiam nossos comportamentos e decisões.

As guerras deixam marcas na história de uma nação, no rosto de um ancião, e no coração do cidadão. Deixam marcas nos troncos cortados, nos animais ameaçados e num ambiente perturbado. A contaminação do ar deixada pelos explosivos ou barricadas, o desvio de cursos de água ou a contaminação da água e do solo (conflitos no Oriente Médio, por exemplo, atingem campos de petróleo, que por sua vez vazam chegando em riachos e se espalham pelos afluentes) impactam todos os seres vivos e seus ecossistemas. As guerras, que apesar de humanas, são planetárias, atingem gente, bicho, solo, ar e água.

Em respeito e solidariedade a todos os seres humanos e não humanos que habitam zonas conflituosas, desejamos paz.

*Grupo de Estudos e Pesquisa em Dimensões Humanas da Natureza (DHN), com uma abordagem transdisciplinar, dedica-se à discussão e análise de estratégias de conservação, manejo de conflitos socioambientais, uso e acesso aos recursos naturais.

Fonte: O Eco