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Opinião

Yanomami sob ataque: garimpo é vetor de abusos e destruição

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*Mara Gama

No dia 25 de maio, a Terra Indígena Yanomami (TIY) completa 30 anos de demarcação, com um cenário desolador. “O pior momento de invasão” em toda a história, segundo um novo relatório da Hutukara Associação Yanomami (Hay), com desmatamento, destruição ambiental, violências de vários tipos contra os indígenas, disseminação de doenças, tomada de unidades de saúde e contaminação das águas. Só de 2020 para 2021, o garimpo ilegal avançou 46% na área.

“O garimpo ilegal não é um problema sem solução, mas o resultado lógico de decisões que favorecem a expropriação de recursos naturais, sempre em prejuízo dos direitos dos povos indígenas do país”, aponta o relatório.

A TIY é a maior reserva do país. Tem cerca de 10 milhões de hectares nos Estados de Roraima e Amazonas. A população total é de cerca de 29 mil indígenas, com 371 comunidades incluindo os Yanomami e os Ye’kwana e seis tribos isoladas: da Serra da Estrutura, do Amajari, do Auaris/Fronteira, do Baixo Rio Cauaburis, do Parawa u, do Surucucu/Kataroa.

Com imagens aéreas, mapas, séries de dados, análises específicas regionais e relatos dramáticos, “Yanomami Sob Ataque: Garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e propostas para combatê-lo” documenta mais um capítulo cruel de uma guerra pulverizada e constante contra as populações indígenas, guerra em que não faltam episódios de abuso sexual. Está tudo lá. É um trabalho de fôlego, com riqueza de detalhes, que deveria ser analisado por todos os órgãos responsáveis e pelos candidatos às eleições.

O relatório do Hya documenta a aceleração drástica da mancha destruída desde 2016: a área de garimpo cresceu mais de 30 vezes em 5 anos (mais de 3.000%), segundo dados do Mapbiomas. Só de outubro de 2018 para dezembro de 2021, a área total destruída pelo garimpo na TIY passou de cerca de 1.200 hectares para 3.272 hectares.

Segundo o relatório, 56% da população total da TIY é afetada diretamente pela atividade: 273 comunidades, com 16 mil indígenas. “O garimpo é uma atividade financiada por empresários com alta capacidade de investimento e que concentram a maior parte da riqueza extraída ilegalmente da floresta yanomami”, diz o relatório.

O garimpo de ouro e cassiterita desmatou, poluiu os rios, impulsionou aumento de malária e outras doenças contagiosas e foi responsável por um aumento de violência contra os indígenas. “A qualidade de vida no estado teve perdas consideráveis no que se reflete no seu Índice de Progresso Social e nos indicadores de criminalidade regional”, diz o texto.

O aumento de circulação de garimpeiros armados nas diferentes regiões da TIY tem impedido o atendimento à saúde, com abandono de postos de saúde, e a ocupação das pistas comunitárias para a operação e abastecimento do garimpo.

Dois fatores externos ao garimpo concorrem para a expansão da atividade na TIY, segundo o relatório: o aumento do preço do ouro no mercado internacional e o agravamento da crise econômica e do desemprego no Brasil.

Entre as demais causas, mais circunscritas e evitáveis, estão “falhas regulatórias que permitem fraudes na declaração de origem do metal extraído ilegalmente”, numa cadeia produtiva que não tem transparência. Além disso, houve uma “fragilização das políticas ambientais e de proteção a direitos dos povos indígenas e da fiscalização da atividade ilícita nas TIs”.

Como exemplo das falhas regulatórias, o relatório lembra que, no primeiro semestre de 2019, o Estado de Roraima, mesmo sem possuir nenhuma lavra autorizada, exportou para a Índia R$ 48,7 milhões em ouro. Isso foi possível porque é muito fácil “esquentar” o ouro de lavra ilegal.

O ouro extraído nos garimpos deveria ser vendido apenas às compradoras autorizadas pelo Banco Central, em postos de compra (PCOs) junto aos garimpos permitidos. O ouro chega ali em estado bruto e deve ser mandado a uma fundidora que padroniza o metal para ser comercializado.

Mas, como explica o relatório, a legislação atual estabeleceu que, no momento da compra, nesses postos, é considerada uma autodeclaração do portador como garantia de que o ouro foi extraído de uma lavra garimpeira autorizada, permitindo fraude.

Além dessas facilidades, o relatório também aponta que o aumento do garimpo se deve a uma modernização do mundo do crime através de “inovações que permitem agilidade na comunicação e movimentação dos garimpeiros ilegais”. E, por fim, “o incentivo que o atual governo dá ao garimpo, criando expectativa de regularização da prática” que é ilegal.

O relatório diz que a situação atual poderia ser evitada com políticas públicas que respeitassem plenamente princípios constitucionais de garantia e proteção de direitos fundamentais e sugere “um conjunto de ações” que exigem “vontade política para garantir uma atuação eficiente e coordenada do Estado e a articulação entre os órgãos e agentes responsáveis”.

A retomada das Bases de Proteção Etnoambientais em locais estratégicos e uma estratégia de Proteção Territorial consistente, capaz de deflagrar operações regulares de desmantelamento dos focos de garimpo, são fundamentais, segundo o texto, bem como a participação dos Yanomami no sistema de vigilância.

Ao mesmo tempo, deveriam ser deflagradas operações repressão à atividade ilegal, com a inutilização de pistas de pouso clandestinas e apreensão de aviões, reocupação dos postos de saúde e pistas de voo comunitárias e a destruição do maquinário utilizado na extração de ouro com o objetivo de impedir a rápida retomada da exploração. O relatório também aponta a necessidade de fiscalização permanente de aeródromos privados dos arredores da TI Yanomami “que funcionam como centros de distribuição logística do garimpo ilegal”.

Para coibir a circulação do ouro obtido de forma ilegal, o relatório cita documento do Instituto Escolhas com ações como a implantação de um sistema de rastreabilidade de origem e conformidade ambiental e social da produção e do comércio de ouro, a extinção do regime de Permissão de Lavra Garimpeira; e a revogação da Lei 12.844/2013, que trata do transporte e da comercialização de ouro dos garimpos, e que facilita a lavagem.

O documento também aponta a necessidade da retomada de projetos que ofereçam alternativa de renda para as comunidades indígenas vizinhas às áreas de garimpo, como manejo do cacau nativo, a comercialização de chocolates e o ecoturismo no Pico da Neblina.

*Mara Gama é jornalista e pós-graduada em Design. Trabalhou na MTV Brasil e foi repórter, consultora de texto e colunista de meio ambiente da Folha de S. Paulo. Fez parte da equipe que iniciou o UOL, onde foi diretora de qualidade de conteúdo e ombudsman. Atualmente é consultora de texto e estuda economia circular e sustentabilidade.

Fonte: UOL