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Opinião

A boiada das leis ambientais nos tira do mundo

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* Míriam Leitão

As florestas e os índios brasileiros estão vivendo um risco extremo nos inúmeros projetos que tramitam no Congresso. A boiada do Salles era infralegal. A do Congresso, é mais perigosa porque quando vira lei fica mais difícil desfazer. Há projeto que anistia até grileiro futuro, outro que, na prática, acaba com licenciamento ambiental. Tem um que abre terra indígena para todo o tipo de atividade e permite que entidades privadas façam o contato com índios isolados. Deixe eu ser clara: mesmo se você for indiferente às agendas ambiental e indígena, você vai perder. O Brasil será isolado da economia mundial.

— Estamos no pior dos mundos, porque há a união do Executivo com o Congresso. Sobra o Judiciário, mas ele é lento. Os decretos, o sucateamento do Ibama, a redução do orçamento podem ser revertidos. As perdas legislativas podem se eternizar — afirma Márcio Astrini, coordenador do Observatório do Clima.

A estratégia de ambientalistas, indigenistas e empresários que defendem a sustentabilidade é tentar evitar a aprovação desses projetos sem que o Brasil entenda o que está sendo votado. Astrini usa a expressão: “o empate é nossa vitória.”

Quem se dedica ao estudo dos povos indígenas está ainda mais aflito. Nem o empate é possível. A antropóloga Luísa Molina, doutoranda da UnB, fez um estudo com outros pesquisadores sobre o garimpo nas terras Munduruku e Sai Cinza, no alto e médio Tapajós, no sudoeste do Pará. O estudo “Cerco do Ouro” é de arrepiar. O desmatamento explodiu nas terras Munduruku em 2019 e 2020. Aumentam os casos de contaminação por mercúrio, covid e aliciamento de pessoas para o tráfico de armas. Maquinários pesados são encontrados dentro de terras indígenas.

Em alguns pontos da Amazônia, os vários crimes, de tráfico de drogas e de armas, garimpo e contrabando de madeira estão se unindo. Aumenta a força das quadrilhas que atuam na região. O governo estimula os grileiros. Bolsonaro é o primeiro governante que acha que tem ganhos políticos com a má notícia ambiental. Só que agora grileiros têm sócios mais perigosos. Há casos que mostram a grande capitalização do crime.

— Em dezembro do ano passado uma ação do Ibama na Ituna Itatá (Pará) ocasionou as demissões dos coordenadores que fizeram a operação. O que chamou a atenção foi o maquinário enorme dentro da terra indígena. Sempre há uma escavadeira, esteira para retirar o ouro, uma ou duas, mas quando se encontra 16 escavadeiras é uma operação de R$ 30 milhões a R$ 40 milhões. O crime está ganhando escala — diz Astrini.

No Brasil das muitas urgências, passa boi, passa boiada, passa maquinário pesado para o desmatamento e para o garimpo, unem-se os criminosos. O governo Bolsonaro tem estimulado os ocupantes de terras públicas e o Congresso está votando as leis. Dias atrás a Câmara aprovou a urgência do PL 2633. Ele abre várias possibilidades de legalização de terra grilada depois de 2008. O Código Florestal estabelece 2008 como ano limite. Esse e outros projetos trazem a data para mais perto. No Senado, há o PL 510, com o mesmo objetivo. O 510 é um espelho da MP 910, da grilagem, que não prosperou. Ele cria anistia até 2014. Mas abre caminho para aprovar grilagens depois dessa data. Até as que nem ocorreram ainda.

— Tudo está perdoado para trás, e o que ocorrer para frente o governo vai facilitar a titulação das terras para quem a ocupou ilegalmente. Um grileiro de terra na Amazônia hoje se sente protegido. Ao invés de ter medo da Justiça, ele é empoderado pelo próprio governo e pelas leis que tramitam — diz Astrini.

Há ainda o projeto de licenciamento ambiental que elimina travas legais e protege os bancos que financiarem as obras mal licenciadas.

O PL 490 é o mais cruel dos projetos, porque aumenta a vulnerabilidade dos indígenas. Acaba com as novas demarcações, libera mineração, exploração de madeira, construção de estradas se houver “interesse nacional”, e acaba com a política de “não contato” com os isolados que, sem memória imunológica, vão morrer. É isso. Vão morrer.

O mundo está indo na direção oposta. O “Financial Times” publicou dias atrás um forte editorial pedindo aos investidores, aos donos de U$ 7 trilhões, que punam o Brasil. “O Código Florestal está virando letra morta”, diz o jornal. Há muitos outros projetos. Todos eles nos tiram do mundo civilizado e aumentam o grau de barbárie no país.

*Míriam Leitão, jornalista há mais de 40 anos, é colunista do jornal O Globo desde 1991. É autora, entre outros, do livro Saga Brasileira, ganhador do Jabuti de Livro do Ano (2012). Entre seus prêmios, recebeu o Maria Moors Cabot da Columbia University (NY).

Fonte: O Globo