Opinião

Desmatamento ilegal zero, mais uma distorção do Bolsonaro

*Por Philip Martin Fearnside

Em 22 de abril de 2021, exatamente um ano após a infame reunião ministerial “passando a boiada”, o presidente Bolsonaro discursou na cúpula virtual do clima, convocada pelo presidente dos EUA, Joe Biden. As múltiplas falsidades e distorções no discurso de Bolsonaro já foram bem documentadas. Há mais uma distorção importante: a promessa de Bolsonaro de “desmatamento ilegal zero” até 2030.

O “desmatamento ilegal zero” pode ser alcançado de duas maneiras: parando o desmatamento e simplesmente declarando como “legal” o desmatamento que está ocorrendo. A área de floresta que é realmente derrubada é tudo o que importa para o clima, não a legalidade do desmatamento. A legalização do desmatamento ilegal acelerou desde que o Presidente Bolsonaro assumiu o cargo em 1º de janeiro de 2019. Um primeiro passo neste processo é a legalização de reivindicações de terras ilegalmente ocupadas ou demarcadas, após o que o desmatamento passado pode ser legalizado nas novas “propriedades” e desmatamento futuro pode ser permitido através do sistema de licenciamento existente. Tem sido demonstrado que a legalização de terras ilegais na Amazônia brasileira estimula o desmatamento. Propostas para outras formas de legalização do desmatamento também estão em andamento, incluindo permitir que pecuaristas e plantadores de soja desmatem legalmente em Terras Indígenas, como seria permitido por um projeto de lei (PL 191/2020) apresentado ao Congresso Nacional pelo Presidente Bolsonaro.

Até 2009 apenas áreas com até 100 ha podiam ser legalizadas, visando regularizar as terras de pequenos agricultores, mas isto mudou com a primeira “lei da grilagem” (Lei 11.952/2009) para permitir legalização de até 1.500 ha por requerente. Em 2017 a segunda “lei da grilagem” (Lei 13.465/2017) alterou o Artigo 6º, § 1º da Lei 11.952/2009, aumentando esse limite para 2.500 ha. Esses limites de área são para cada requerente (ou seja, para cada CPF), e uma família com vários membros pode, portanto, legalizar uma área enorme. Além de aumentar a área que pode ser legalizada para cada requerente, a data limite antes da qual a ocupação deve ser comprovada avançou sucessivamente, criando a expectativa lógica entre os potenciais grileiros de que eles podem violar as leis atuais e, posteriormente, ser “anistiados” e ter as áreas invadidas legalizadas.

Um projeto de lei para uma terceira “lei da grilagem” (PL 2.633/2020) está avançando para votação na Câmara dos Deputados. Além disso, em 15 de abril de 2021 o Senado aprovou um projeto de lei (PL 4.348/2019) facilitando ainda mais a grilagem das terras, e o projeto aprovado já foi encaminhado à Câmara dos Deputados para a sua aprovação. Outro projeto do Senado (PL 510/2020) acrescentaria ainda mais dispositivos para facilitar a grilagem, e ambos os projetos concederiam títulos com base em meras autodeclarações e sem fiscalização in loco.

A obtenção de títulos de propriedade tem sido muito facilitada desde que o Código Florestal Brasileiro foi substituído em 2012 e o Cadastro Ambiental Rural (CAR) foi criado. Apesar de ser intencionado para controle ambiental, o CAR foi pervertido para servir de ferramenta de grilagem ao permitir que reivindicações autodeclaradas fossem documentadas sem qualquer forma de fiscalização. Os grileiros normalmente desmatam parte da floresta em suas áreas reivindicadas para estabelecer a posse, e, muitas vezes, podem obter títulos por meio de suborno ou outros meios ilegais. Com ou sem título, o grileiro subdividirá a área reivindicada e a venderá para fazendeiros ou outros compradores com um lucro enorme, e os novos “proprietários” converterão a floresta em pastagens.

Um problema relacionado é a legalização de terras illegalmente compradas nos quase 3.000 assentamentos rurais na Amazônia brasileira que foram estabelecidos pelo programa de reforma agrária do governo para acolher pequenos agricultores sem terra. Os regulamentos proibam os assentados de vender as suas terras durante um longo período de anos, mas muitos vendem a posse para compradores quando valores atraientes são oferecidos. Múltiplos “lotes” (normalmente de 100 ha cada) comprados ilegalmente são convertidos em fazendas médias e grandes dentro do assentamento. O máximo que podia ser legalizada nas áreas de assentamento era de 100 ha até 2014, quando aumentou para 200 ha (Lei 13.001/2014), e em 2017 esse limite aumentou para 400 ha (Lei 13.465/2017). O projeto de lei que acaba de ser aprovado no Senado (PL 4.348/2019) elevaria esse limite para 2.500 ha. Além do desmatamento pelos próprios fazendeiros, essa concentração de lotes faz com que os pequenos agricultores que venderam seus lotes migrem para outros locais e iniciem novos focos de desmatamento. Espera-se que este processo aumente ainda mais com a fácil legalização de fazendas consolidadas nas áreas de assentamento.

A grilagem de terras é um perigo particularmente grave na região Trans-Purus, entre o rio Purus e a fronteira do Brasil com o Peru. Esta área atualmente é inacessível por estradas e representa o último grande bloco da floresta amazônica do Brasil. Hoje, a região Trans-Purus é a principal área que continua a manter os papéis climáticos da Amazônia em estocar carbono e reciclar a água que é transportada pelos “rios voadores” para São Paulo e outras partes das regiões sudeste, sul e centro-oeste do Brasil. A região Trans-Purus tem uma vasta área de terras públicas não destinadas (“terras devolutas”) que seriam abertas à entrada de grileiros e outros atores pela planejada rodovia AM-366 que ligaria à notória rodovia BR-319. Atualmente, uma estrada vicinal ilegal está sendo construída através de uma terra Indígena e um parque nacional e, quando completa, fornecerá acesso a partir da BR-319 a Tapauá – a porta de entrada para a região TransPurus.

As normas ambientais do Brasil têm sido destruídas pela “boiada” que passou durante o governo de Jair Bolsonaro, e a recente passagem do controle de ambas as casas do Congresso Nacional para a coalizão de partidos que apóiam o Presidente (pelo menos em assuntos da agenda “ruralista”) irá facilitar a aprovação de uma série de projetos de lei desmantelando ainda mais as proteções ambientais. Essa reviravolta política também facilitará a aprovação dos vários projetos de lei que propõem uma maior facilitação da grilagem de terras, e o papel fundamental da grilagem no processo de desmatamento na Amazônia acelerará ainda mais a destruição.

*Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM). É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007.
Fonte: Amazônia Real