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Opinião

A conservação do Cerrado na lógica econômica

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Mecanismos financeiros disponíveis ainda não bastam para enfrentar o desafio de recuperar milhões de hectares

*Por Fabricio de Campos

Notadamente conhecida como região produtora de grãos e carne, o Cerrado tornou-se fundamental para a balança comercial brasileira. Somente a soja produzida localmente responde por 51% do plantio no país. A partir da década de 1970, o Cerrado transformou-se em uma nova e importante fronteira agrícola brasileira. Essa transformação impulsionou a produtividade agropecuária, tornando o Brasil um dos principais produtores mundiais de commodities.

Além das exportações, o bioma também é estratégico para a manutenção dos recursos hídricos do Brasil, pois abriga nascentes ou leitos de rios de oito bacias hidrográficas dentre as doze que existem no país. Ou seja, participa direta ou indiretamente de inúmeros outros setores econômicos. O Cerrado é ainda importante pela biodiversidade e detentor de valioso patrimônio cultural e histórico.

Apesar disso, está em um estado grave de degradação ambiental. Atualmente, a destruição e fragmentação de habitats são a maior ameaça à sua integridade: cerca de 50% do seu território já foi desmatado e aproximadamente 80% já foi modificado de alguma forma pelo homem, devido à expansão agrícola, urbana e construção de estradas. Apesar do desmatamento no Cerrado ter tido uma leve queda no ano de 2019 (2,26%) em comparação ao anterior, a média de desmatamento chega a 1 milhão de hectares por ano.

Entendemos que é fundamental garantir a continuidade da produção agropecuária na região, mas também é necessário trabalhar as cadeias produtivas da soja e da carne bovina, que juntamente com o processo de especulação fundiária, são os maiores drivers de desmatamento local. É importante ressaltar que o Código Florestal exige que apenas 25% da vegetação natural do Cerrado seja preservada em propriedades privadas e apenas 8,7% do bioma está legalmente protegido pelo SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação), diferentemente do que ocorre na Amazônia que conta com boa parte do seu território protegido por UCs e Terras Indígenas. Mas justamente por isso, as iniciativas do setor privado e dos produtores rurais e as políticas governamentais fazem muita diferença na redução do desmatamento e na recuperação das áreas degradadas.

A recuperação de pastagens degradadas é uma das formas de conservar o Cerrado. Com linhas de crédito apropriadas para a recuperação, esse investimento pode se tornar uma oportunidade: estima-se que a reabilitação de 10 milhões de hectares de pastos poderia movimentar entre R$ 9 bilhões e R$ 17 bilhões em oportunidades para o setor produtivo e financeiro, dependendo do arranjo produtivo para essa reabilitação. Outra possibilidade é a restauração da vegetação nativa, com o desenvolvimento de modelos financiáveis para a recomposição de áreas naturais, utilizando espécies de interesse econômico para trazer retorno sobre o investimento. Os mecanismos financeiros para o produtor já existem, mas precisam ser ampliados, com novas linhas “verdes” de crédito.

Não se trata de obrigação legal, tampouco de despesa: a recuperação e reabilitação de áreas produtivas no Cerrado podem trazer retorno financeiro positivo. Estimativas indicam que 30% das pastagens do bioma (mais de 23 milhões de hectares de acordo com Lapig/2017) estão altamente degradadas e subutilizadas. A degeneração das áreas representa prejuízos anuais em torno de R$ 9,5 bilhões aos produtores (estimativas do Rally da Pecuária, 2018). Para cada um deles, há uma redução patrimonial de ao menos 50%, considerando o preço da terra com pastagens que deveriam apresentar alta capacidade de produção, mas estão com baixa capacidade (dados baseados em Anualpec, 2019). Neste contexto, quem mais sofre é o pequeno produtor, com áreas menores a perda é proporcionalmente maior, inviabilizando o negócio.

Os produtores esbarram nos custos iniciais de transição e no acesso às linhas de créditos disponíveis. Assim, para que a reabilitação de pastagens ganhe a escala necessária no Cerrado, é preciso criar mecanismos financeiros e ampliar aqueles que já existem. O Programa ABC Recuperação, por exemplo, é hoje a principal linha de crédito rural para apoio à reabilitação de pastagens degradadas. Ele oferece até cinco anos de carência, permite amortização da dívida em até 10 anos e possui taxas de juros prefixadas em 6% ao ano.

Os mecanismos financeiros disponíveis ainda não bastam para enfrentar o desafio de recuperar milhões de hectares de pastagens. O valor para esta recuperação (apenas pastagens) seria de, aproximadamente, R$ 9,45 bi, sendo R$ 5,4 bi para Centro-Oeste Cerrado e mais R$ 4,05 bi para Nordeste Cerrado (MATOPIBA) até 2030. Grande parte desses recursos poderiam vir do Programa ABC e Fundos Constitucionais. Por isso é indispensável colaboração entre instituições financeiras públicas e privadas.

A colaboração de instituições financeiras, como bancos, seguradoras, investidores e securitizadoras, de empresas da cadeia de valor, como traders e frigoríficos e de produtores rurais pode criar arranjos financeiros que beneficiam a todos. Isso traria segurança e transparência para a aplicação financeira na produção agropecuária, criando um círculo virtuoso, com o aumento de oportunidades financeiras e ambientais. Dentre os aspectos favoráveis destacam-se o maior aproveitamento do potencial produtivo das terras, resgate dos serviços ecossistêmicos perdidos ao longo do processo de ocupação do bioma e o aumento de proteção aos recursos hídricos e sequestro de carbono.

O Cerrado pode atender a demanda por commodities sem precisar desmatar novas áreas. Além da recuperação de áreas degradadas, já existem técnicas como a Integração Lavoura-Pecuária-Floresta e Integração Lavoura-Pecuária, que promovem maior eficiência, maior produção e menor pressão pelo desmatamento. Ao ignorar estas ferramentas estamos perdendo um grande potencial produtivo, destruindo áreas novas, nos afastando das NDCs acertadas pelo Acordo de Paris e acumulando prejuízos da subutilização.

Pensar na eficiência do uso da terra – aplicar a lógica econômica de fato – pode salvar o Cerrado.

Fabricio de Campos é coordenador de Finanças Verdes do WWF-Brasil (World Wide Fund for Nature)

Fonte: WWF-Brasil