Opinião

A cegueira do governo brasileiro e a tentativa de acobertar a destruição da Amazônia

*Por Carlos Bocuhy

A preservação da Amazônia e da Mata Atlântica, seja como defesa do meio ambiente ou do ponto de vista econômico, de forma comprovada, é de grande interesse do Brasil. Mesmo assim, o governo brasileiro continua a ignorar esse fato e surpreende a todo momento com medidas que vão no sentido contrário.

No início deste mês, o ministro de Meio Ambiente, Ricardo Salles, tentou uma manobra diversionista para rebaixar a proteção da Amazônia. A proposta inaceitável do ministro é que sejam desconsiderados o desmatamento e os incêndios ilegais em 90% em todo o país, previsto no Plano Plurianual (PPA) do governo até 2023. A área de proteção proposta representa apenas um terço do desmatamento da região entre agosto de 2018 a agosto de 2019.

Este absurdo usou como artifício a habitual desculpa da restrição orçamentária, cortina de fumaça da qual lançam mão, com frequência, gestores que articulam mudanças indesejáveis para a sociedade, como os retrocessos ambientais. Um tiro no pé do Brasil.

Fato semelhante ocorre em São Paulo, com a sinalização de extinção da Fundação Florestal, responsável pela gestão das unidades de conservação, da Mata Atlântica e da biodiversidade.

Não há cortina de fumaça que esconda a importância da proteção da Mata Atlântica, ou da Amazônia. O mundo está avançando conceitualmente: a busca de uma economia “limpa”, neutra em emissões de aquecimento global, faz com que a União Europeia avance em indicadores para mensurar o desempenho de seus países-membros, enquanto fundos internacionais pressionam o desempenho brasileiro para que demonstre a regularidade ambiental dos produtos exportados. Dentro de casa, representantes expressivos do setor financeiro nacional cobram fortemente o governo federal sobre a condução de políticas ambientais que possam dar conta do compliance necessário à inserção dos produtos brasileiros no mercado internacional.

Estão se consolidando fortemente, de forma global e no meio econômico do Brasil, os princípios da ESG (Environment, Social and Governance), demonstrando a tendência universal e irreversível de uma nova economia. A discussão despontou vigorosamente entre as nações desde a Conferência Rio + 20, que introduziu princípios da economia verde e resultou em melhor definição sobre a responsabilidade socioambiental dos agentes financeiros.

Um dos enfoques que despontam com o ESG é a contabilização dos passivos ambientais. Essa é a grande conta a ser cobrada hoje do governo brasileiro: o rombo incalculável no patrimônio ambiental público representado pela Floresta Amazônica e sua biodiversidade, cuja destruição segue gerando um passivo astronômico. A rigor, a legislação brasileira obriga a recuperação das áreas protegidas que foram degradadas.

A tendência da ESG tende a emergir fortemente no cenário internacional e cria um mar de desvantagens aos que ficarem cegos às suas mudanças. O Brasil será confrontado no futuro com relação aos passivos atualmente gerados, pois assinou vários tratados internacionais onde, para além de nossa própria legislação protetiva, reconheceu e assumiu compromissos para a proteção de suas florestas e biodiversidade.

Diante disso, causa perplexidade o fato de o ministro da Economia Paulo Guedes tentar esquivar-se do volume de crimes e passivos ambientais que se acumulam na Amazônia. Ao argumentar junto a americanos que nossos militares são melhores que o general Custer, tentou esquivar-se, de forma descontextualizada, da cobrança dos princípios morais que regem a modernidade.

Ao refugiar-se no atraso conceitual do século XIX, Guedes revelou pobreza conceitual, o que traz sérias dúvidas sobre a possibilidade de que sua presença no governo represente um melhor alinhamento do Brasil com a modernidade da ESG e a eficiência econômica necessárias ao trânsito internacional. Nota-se mais e mais a falta de preparo ministerial para a inserção do atual governo do Brasil na conformidade dos requisitos da ESG.

A ESG é um indicador “zeitgeist”, sintonizado no espírito de nosso tempo. Alicerça-se em um fio condutor moral, com valores se consolidaram ao longo de décadas na economia contemporânea, fatores que devem ser percebidos e apreendidos por bons gestores públicos, sendo condição basilar para o exercício dessas funções.

Considerando-se o perfil multidisciplinar das questões ambientais, o contínuo cerco institucional em defesa deste novo paradigma acabará por enfiar goela abaixo dos gestores despreparados a conta da destruição ambiental.

Infelizmente, até que isso ocorra, o efeito “poltergeist” que grassa no Brasil vai continuar conturbando metas e esforços anteriormente consolidados, levando o país ao atraso e a passivos cuja recuperação é inimaginável.

O efeito “poltergeist” do governo Bolsonaro é multidisciplinar e revela perturbações interministeriais evidentes. Da boiada de Salles ao Custer de Guedes, resta a perplexidade que incomoda a todos os que acompanharam o processo progressista na evolução brasileira e internacional da área da gestão ambiental, conquistado passo a passo. Que espaço político, de tal obscuridade conceitual, pode abrigar tais personagens, notórios por sua simpatia por mineradores ilegais, invasores de terras públicas e desmatadores?

Este “poltergeist” governamental tem que ser exorcizado. A sociedade brasileira deve colocar os limites jurisdicionais à tese de mera discricionariedade que vem destruindo a boa imagem do Brasil – e que tem abrigado uma bagunça sistêmica sem precedentes, cuja conta está sendo legada às atuais e futuras gerações.

*Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam)

Fonte: O Eco