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Opinião

Licenciamento ambiental e o liberalismo de Estado máximo

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*Marcio Astrini
**Suely Araújo

Está em curso nas duas Casas do Congresso Nacional um experimento político singular: setores ditos “liberais” da economia e seus lobistas correm contra o tempo e a covid-19 para aprovar uma Lei Geral do Licenciamento Ambiental que, a título de reduzir o “peso do Estado” nas atividades produtivas, acaba criando a necessidade de mais inchaço na já gorducha máquina pública. Os projetos em tramitação, pode-se dizer, criam mais uma variedade de jabuticaba no país – o liberalismo de Estado máximo. Vejamos.

A avaliação prévia inerente ao licenciamento é a principal ferramenta para assegurar que os empreendimentos a serem instalados no país ponderem seus efeitos em termos de poluição e outras formas de degradação ambiental. Nesse esforço, os órgãos ambientais licenciadores analisam a viabilidade de cada empreendimento. Para aqueles considerados viáveis, fixam medidas voltadas a prevenir, mitigar ou compensar impactos negativos e maximizar os positivos. Essas medidas são chamadas de condicionantes ambientais.

O licenciamento como o conhecemos opera há quatro décadas no Brasil e é um herói quase anônimo. Foi graças a ele que ficaram no passado tragédias como a do Vale da Morte, em Cubatão, onde bebês nasceram sem cérebro devido à poluição industrial no início dos anos 1980. Ou o desmatamento predatório e genocida de índios da Transamazônica, nos anos 1970.

O controle ambiental realizado hoje no país, do ponto de vista do conhecimento técnico, está no mesmo patamar do que se faz nos países mais avançados. Os principais problemas aqui são de outra ordem: as equipes dos órgãos ambientais estão sendo dizimadas pela não reposição dos técnicos que se aposentam ou saem por outros motivos (em novembro de 2018, confrontado com um pedido para repor 3.000 agentes no Ibama e no ICMBio, o então Presidente da República eleito teve uma reação inesquecível: “Cês tão de brincadeira!”).

Não contam tampouco com orçamento para o monitoramento das condicionantes ambientais durante a operação dos empreendimentos, etapa tão relevante quanto o licenciamento prévio e que pode ajudar a evitar catástrofes como as de Mariana e Brumadinho.

Nas discussões sobre a Lei Geral do Licenciamento Ambiental, esses problemas geralmente são esquecidos. A pressão principal é por agilidade na concessão da licença como mero documento de liberação – uma espécie de carta de alforria –, não como ato final de um processo de planejamento do empreendimento de forma a que ele seja concebido, instalado e operado da forma menos impactante possível.

Na ânsia de ultrapassar barreiras burocráticas de um Estado que deve, ao mesmo tempo, ser mínimo e não ficar “no cangote de quem produz”, muitos supostos liberais pressionam para afastar da avaliação e das condicionantes inclusas na licença os impactos indiretos, assim como medidas compensatórias de cunho socioeconômico. Plantam com isso a mudinha do liberalismo de Estado máximo.

Considere-se o desmatamento gerado pelo asfaltamento de uma grande rodovia na Amazônia como exemplo de impacto indireto. Se o licenciador sabe, por vários empreendimentos anteriores fartamente estudados, que abertura e asfaltamento de rodovias impulsionam desmatamento porque facilitam a abertura de ramais, no efeito conhecido como “espinha-de-peixe”, como excluir essa realidade da avaliação de impacto ambiental? Como conferir atestado de viabilidade de um empreendimento desse tipo ignorando esse efeito que, em alguns casos, é o seu principal impacto negativo?

Representantes do setor privado e também de órgãos públicos da área de infraestrutura alegam que a solução desse problema passa por políticas públicas que tragam fiscalização ambiental rígida, ordenamento territorial na região e outras medidas. O empreendedor, concessionário privado ou mesmo a autarquia responsável não poderia ser onerado com responsabilidades rotuladas como “políticas públicas”.

Mas aí a lógica dos liberais de botequim quebra: afinal, essas políticas públicas dependem de ação ampliada do (portanto, de mais dinheiro para o) Estado, que segundo eles tem de ser reduzido e, concretamente, tem de lidar com a crise fiscal que perpassa as diferentes esferas da federação.

Ninguém quer impor ao empreendedor que fiscalize ele próprio toda a região às margens de uma rodovia na Amazônia ou se transforme em uma agência de desenvolvimento regional. Mas as condicionantes da licença ambiental têm de requerer medidas de apoio e buscar articular a atuação dos entes públicos e privados envolvidos. A governança contemporânea em políticas públicas, que deve, sim, se pautar por racionalização e eficiência, não pode ser lida como uma repartição em que o bônus vai para uma casta (o setor privado) e o ônus para o poder público.

Outro exemplo nessa linha está na chamada licença por adesão e compromisso – LAC, modalidade simplificada de licenciamento adotada por alguns governos estaduais. Na LAC, o empreendedor não entrega estudo ambiental ao licenciador como ocorre nas demais licenças: ele simplesmente adere a condicionantes ambientais previamente estabelecidas pelo órgão ambiental.

A LAC está na moda nos debates atuais sobre a Lei Geral; há pressão para que um conjunto grande de empreendimentos possa ser licenciado dessa maneira. Representantes do empresariado têm resistido a limitar essa modalidade de licença a empreendimentos qualificados como de baixo impacto e baixo risco e que não se localizem em áreas frágeis.

Além disso, na LAC não existe isenção de estudos ambientais, como alguns querem crer. Ela não se limita a uma mera declaração do empreendedor. Os estudos são feitos pelo órgão ambiental licenciador, considerando a categoria de empreendimento, porte e localização. A equipe técnica do órgão licenciador realiza um conjunto grande de análises prévias para que essa lista possa ser formalmente estabelecida tendo em vista a adesão pelos empreendedores. É impossível viabilizar essas análises com os órgãos ambientais funcionando no osso, como estão hoje.

Sem elas, a LAC não consegue prevenir, mitigar ou compensar os impactos negativos do empreendimento. Em bom português, a LAC generalizada tira a conta do empreendedor e a joga nas costas do poder público e da sociedade, que tem de arcar com os impactos. O cidadão paga duas vezes.

Também não existem nos órgãos ambientais licenciadores e equipes para atender a dispositivos da proposta Lei Geral que trazem prazos muito curtos para a concessão da licença ou para a manifestação de autoridades. O resultado poderá ser inverso ao pretendido, com os analistas optando por negar a licença, o que na maioria das vezes é mais simples do que fundamentar a aprovação, para não ter de responder pelo descumprimento do prazo.

Esses são alguns de vários pontos que precisam ser debatidos no projeto da Lei Geral do Licenciamento Ambiental. Os ambientalistas, diferentemente do que se propaga, têm defendido a aprovação dessa lei há muito tempo; há propostas nesse sentido que datam de logo após a Constituição de 1988. A lei tem de trazer uma base consistente para a aplicação do licenciamento e dos estudos e análises associados a ele. Tem de estabelecer padrões mínimos nacionais, sem esvaziar a prerrogativa de estados e municípios complementarem as regras estabelecidas.

Para a definição do conteúdo dessa lei, o pressuposto não pode ser afastar amarras estatais de forma simplista e liberar a instalação de empreendimentos sem condicionantes que assegurem a devida atenção para o conjunto de impactos e riscos a eles associados. Se não for assim, o resultado será mais judicialização e insegurança jurídica para o empreendedor. O barato dos liberais de Estado máximo pode sair bem mais caro.

* Marcio Astrini é secretário-executivo do Observatório do Clima.

*Suely Araújo é especialista sênior em Políticas Públicas do Observatório do Clima. Foi presidente do Ibama (2016 a 2018).
Fonte: Poder 360