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Opinião

Não esqueçamos a origem do coronavírus: parem o tráfico e consumo de animais silvestres imediatamente!

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*Malene Emilie Rustad

**Augusto Gomes

O mundo começa finalmente a entender a gravidade da crise do coronavírus. Pessoas estão presas em casa, receosas pela sua saúde, pelos seus entes queridos e ainda, pelos seus postos de trabalho.

Mas enquanto lavamos as mãos compulsivamente e mantemos o penoso distanciamento social, negligenciamos também importantes medidas preventivas – aquelas que podem impedir o surgimento de uma pandemia.

O primeiro paciente diagnosticado com coronavírus foi infectado muito provavelmente ao comer um morcego ou um pangolim em um “mercado fresco” na cidade chinesa de Wuhan. Estes locais são assim chamados por manterém animais vivos até o momento do abate, sob demanda do freguês.

Desde os anos 60, com a crise no abastecimento alimentar devido às rígidas políticas governamentais de controle sobre os meios de produção, a China vem estimulando a caça, o comércio e o consumo de animais silvestres. Esta prática se provou muito problemática, tanto para pessoas quanto para os animais, e levou ao surgimento de várias doenças até então adormecidas.

Treze anos atrás, em Wuhan, uma equipe de cientistas descobriu que os morcegos da família Rhinolophidae são reservatórios naturais para uma variedade de vírus, dentre eles um intimamente relacionado ao da SARS, que causou uma epidemia da doença respiratória em humanos em 2002-2003. Eles alertaram que um surto semelhante ao SARS poderia aparecer em breve. Mas para quê dar ouvidos aos cientistas, não é mesmo?

O COVID-19 é um tipo de vírus chamado zoonótico. Cerca de 60% das doenças infecciosas são provenientes de animais e quase todas as pandemias são originárias de animais. As epidemias anuais de gripe, por exemplo, são provavelmente originadas em aves ou porcos.

Uma das pandemias zoonótica mais mortais foi a gripe espanhola que, durante 1918-1920, custou mais vidas humanas do que as duas guerras mundiais juntas. Quando a gripe espanhola estourou, não tínhamos conhecimento preciso sobre sua origem, mas hoje sabemos que foi causada pelo vírus influenza A (H1N1), originário de aves ou porcos.

Nos últimos anos, os pesquisadores ressaltaram para um possível surgimento de novas moléstias de origem viral e aumento das epidemias associadas. Mais de dois milhões de pessoas são mortas a cada ano por doenças transmitidas de animais silvestres para o gado, de acordo com um estudo recente. Isso corresponde a quase o dobro de óbitos causados por acidentes de trânsito anualmente em todo o mundo.

Desequilíbrio ecológico e novas doenças

Enfermidades letais e infecciosas como o COVID-19, AIDS, SARS e Ebola geralmente não chegam até os seres humanos por conta própria. Sua disseminação, dentre outros fatores, é resultante da forma como utilizamos a natureza ao nosso redor.

A razão é em grande parte devido à intervenção humana em habitats naturais. De acordo com a Scientific American, doenças emergentes estão frequentemente associadas a regiões com alta densidade populacional onde as paisagens naturais sofrem intenso processo de descaracterização.

Isso pode ser, por exemplo, quando uma floresta virgem é aberta para dar lugar à mineração para extração de lítio, um componente usado na fabricação dos nossos smartphones e outros aparelhos eletrônicos. Ou quando novas estradas são abertas para ligar duas cidades em expansão. Ou quando trocamos nossos campos naturais por campos agrícolas ou pastagens, de forma a antender a crescente demanda mundial por alimentos.

Um estudo mostrou que o risco de contração de malária na floresta amazônica aumentou quase 50% após apenas 4% da floresta ser derrubada. Aparentemente, os mosquitos portadores da malária prosperam melhor em paisagens fragmentadas e bordas florestais. Outro levantamento apontou que os surtos de Ebola são mais prováveis em áreas recém-desmatadas na África Central e Ocidental.

A conversão de habitats e expansão demográfica associadas à caça, tráfico e consumo de animais silvestres em larga escala mudaram nossa relação com a natureza e também nos aproximaram de possíveis parasitos e patógenos, antes restritos aos seus ambientes e hospedeiros de origem.

Como nem sempre temos uma história evolutiva de contato com esses patógenos, muito frequentemente não contamos com um sistema imunlógico capaz de suprimi-los. E um hospedeiro abundante, vulnerável e bem distribuido é tudo que um vírus, bactéria ou verminose anteriormente ocultos precisam para se propagar em ritmo astronômico. Voilá, temos uma pandemia!

Interação sustentável: é hora de repensar nossa relação com a natureza

Assim como o morcego que provavelmente infectou a primeira vítima do coronavírus, os animais silvestres são partes importantes dos ecossistemas, dispersando sementes, comendo insetos e polinizando plantas, como mostra a foto que abre este texto. Mas não se trata apenas de um morcego – o problema surge quando os humanos aumentam seu contato com a natureza e com os animais selvagens.

Biólogos em todo o mundo estão alertando sobre os perigos associados à perda da biodiversidade, em especial o colapso dos serviços ambientais. Estes ditos serviços são todos os ganhos que nós obtemos gratuitamente a partir de ciclos naturais, e dos quais somos dependentes para permanecermos saudáveis e vivos, tais como a renovação do ar, da água e do solo, a provisão de alimentos, de madeira e de minerais, o lazer em áreas naturais, o controle natural de pragas e doenças, etc.

Todavia, como podemos salvar os ecossistemas (e serviços ambientais associados) dos quais tanto dependemos? Não se trata de manter os ambientes naturais livres de pessoas, de acordo com o Centro de Infecções e Imunidade da Universidade de Columbia, mas de aprender a desenvolver nossas atividades de forma sustentável.

A pandemia do coronavírus mostrou que os líderes mundiais estão dispostos a agir (ou pelo menos alguns deles). Vimos o mesmo acontecer durante a crise financeira de 2008: pacotes de resgate financeiro mantiveram a economia e salvaram o sistema capitalista em colapso. Naquela época, como agora, os gases de efeito estufa diminuíram durante a crise. Mas isso não durou muito.

Hoje discutimos medidas profiláticas, entretanto, e a prevenção contra a origem do próprio vírus? Novos vírus surgirão se não agirmos. A solução para a crise futura não são os novos pacotes de crise, mas repensar a nossa relação com a natureza.

O comércio e o consumo de animais silvestres já demonstraram ser extremamente perigosos não apenas para as pessoas, mas também para a vida selvagem, uma vez que muitas espécies estão ameaçadas ou mesmo extintas por esse motivo, como rinocerontes, pangolins e várias espécies de morcegos. Como conseqüência, os serviços ecossistêmicos que eles costumavam fornecer também se foram.

Seja para fins nutricionais, por diversão ou para a medicina tradicional, o tráfico e consumo da vida selvagem é imoral, antiético e potencialmente perigoso. É claro que essa premissa precisa ser relativizada nos casos de tribos isoladas que dependem de carne de caça para sobreviver, mas mesmo elas estão expostas a riscos nesta prática.

Contudo, esse definitivamente não era o caso dos frequentadores do mercado fresco de Wuhan. A propósito, criamos gado, frango e peixe não somente porque é mais fácil comer (e reduzir a pressão sobre a vida selvagem), mas também porque existem várias medidas de controle sanitário e de saúde para manter a ingestão de carne mais segura.

De qualquer forma, o consumo de animais silvestres não deve ser justificado por razões culturais. Muitos comportamentos execráveis, como machismo, anti-semitismo e racismo, também são culturais, mas nem por isso precisamos continuar a seguí-los.

Precisamos, sim, aprender algo com esta crise sem precedentes na saúde pública. Para os animais, para o futuro do planeta e para nossa própria sobrevivência, por favor, PAREM o tráfico de animais silvestres agora mesmo!

*Malene Emilie é jornalista.
**Rustad e Augusto Gomes é biólogo e documentarista de natureza.

Fonte: Conexão Planeta