Opinião

Em vez de maldade, maldade e meia

*Nurit Bensusan

Não bastou mandar para o Congresso Nacional um projeto de lei para regulamentar a mineração, a geração de energia elétrica e a exploração de petróleo e gás dentro das Terras Indígenas, o presidente da república aproveitou essa iniciativa para propor a liberação do plantio de transgênicos nessas terras.

A história dos últimos 520 anos, nesse território chamado Brasil, mostra que os contatos entre índios e brancos sempre foram deletérios para os primeiros. Perderam vidas, saúde, terras, respeito e sobretudo autonomia. Foram dizimados, morreram das doenças dos brancos, foram escravizados, perderam suas terras, seus modos de vida, suas possibilidades de estar no mundo e sua história. O século 20 tampouco foi ameno para esses povos, que descobriram, nos anos da ditadura, que mesmo sendo simbolicamente os donos do país, não havia lugar para eles aqui.

Pode ser que seja uma guerra de mil anos e que estejamos apenas no meio dela. Uma guerra contínua contra o colonizador, uma guerra de batalhas ganhas e perdidas, de idas e vindas. A Constituição de 1988 foi, certamente, uma vitória, direitos originários assegurados. Mas os reveses não tardaram e eis que vivemos hoje uma ofensiva, que alguns pretendem ser final, sobre o que restou dos povos indígenas no Brasil. Essa ofensiva inclui questionar e relativizar os direitos territoriais, limitar o apoio à saúde e ao bem-estar das pessoas, dividir o movimento indígena para quebrar a resistência, propor políticas e atividades reconhecidamente danosas ao meio ambiente e à integridade dos territórios indígenas.

Emblemático que o presidente tenha escolhido o tema da regulamentação da mineração e de outras atividades impactantes no interior das Terras Indígenas para a comemoração dos 400 dias de seu governo. Essa opção, associada ao explicito desrespeito aos ambientalistas, os quais o presidente disse, na ocasião, querer “confinar na Amazônia”, revela, para além do apetite voraz pelos territórios dos índios, uma dificuldade de conviver com a diferença de opiniões e de modos de vida.

A proposta de liberar o plantio de transgênicos nas Terras Indígenas combina perfeitamente com a regulamentação da mineração nas bases sugeridas pelo projeto de lei, enviado pelo Planalto ao Congresso Nacional. Paralelamente à destruição dos territórios pela mineração e pelas atividades de geração de energia e exploração de petróleo e gás, compromete-se a possibilidade dos povos indígenas retomarem, mesmo que tardiamente, sua autonomia com o uso de seu patrimônio genético, ou seja, suas sementes, suas plantas, suas roças, suas curas e sua soberania alimentar.

Em muitos casos, com o cultivo de plantas transgênicas, há uma contaminação dos plantios não transgênicos, tornando a separação impossível. Muito mais grave, porém, é que as sementes tradicionais dos povos indígenas podem desaparecer nesse cenário de contaminação, levando a pelo menos duas consequências desastrosas.

A primeira impacta diretamente os povos indígenas aumentando sua dependência das sementes compradas, ameaçando sua soberania alimentar. A segunda pode impactar toda a humanidade. É nessas sementes, com sua enorme diversidade genética, que reside a possibilidade de resistência contra pragas e doenças de plantas, bem como de adaptação às mudanças do clima. Sem esse repositório de possibilidades, a segurança alimentar do planeta pode ficar em xeque. Quem duvida deve se debruçar sobre a história da Irlanda e da fome das batatas, que matou, no século 19, cerca de um milhão de pessoas e levou outro milhão a abandonar o país imediatamente e mais três milhões de pessoas a imigrarem nas décadas subsequentes. Todas as batatas cultivadas na Irlanda eram geneticamente idênticas e uma doença simplesmente matou todas elas. Essa e muitas outras histórias mostram a gigantesca importância de preservar a diversidade genética das espécies.

Não há dúvida que os projetos de poder são pensados para serem longevos. Hitler falava em um Reich de mil anos. Outros, como Putin, se eternizam no poder por meio de manobras exdrúxulas. Provavelmente, esses que ocupam o poder central no Brasil hoje pretendem ali ficar por muito tempo. Se conseguirão, ainda é uma questão em aberto, mas as consequências de suas nefastas políticas podem ter vida longa.

Uma última reflexão sobre o desejo presidencial de “confinar” os ambientalistas na Amazônia. Se a ideia da frase do presidente era a da acepção mais usual da palavra ‘confinar’, que quer dizer enclausurar, encerrar um um espaço limitado, a frase é uma contradição, não é possível falar em “confinar” alguém em 60% do território nacional. Se o significado da palavra ‘confinar’ na frase foi o de se limitar a determinado assunto, o presidente deveria estar feliz com a atuação dos ambientalistas, muito focada, em geral, na Amazônia. Resta ainda a possibilidade de que na frase com que o presidente brindou ambientalistas em seu 400º dia de governo, a acepção da palavra ‘confinar’ utilizada tenha sido combinar, assim ficamos todos bem combinados, ambientalistas com Amazônia, governo com genocídio e nós todos com a surrealidade nossa de cada dia.

*Nurit Bensusan é coordenadora do Instituto Socioambiental (ISA) e especialista em Biodiversidade.

Fonte: Planeta Bárbaro