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Opinião

O paradoxo de Darwin e os menores vertebrados dos oceanos

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*Gualter Pedrini

Uma lembrança da minha infância que ainda permanece vívida é a de chegar cedo na praia e andar uns poucos metros até uma formação rochosa que despontava sobre a areia. Durante a noite, as ondas varriam essas rochas, chegando a cobri-las completamente, mas, com o recuo da maré pela manhã, formavam-se poças em suas reentrâncias. Cada uma delas era como um pequeno aquário, com uma infinidade de criaturas que ficariam ali aprisionadas até a maré subir novamente.

E assim eu passava quase todas as manhãs das minhas férias de verão, com uma rede de aquarismo vasculhando cada poça e coletando pequenos peixes e crustáceos. No meio da tarde, eu já tinha um balde repleto de criaturas coloridas, que me encaravam com aqueles olhos tão curiosos quanto eu as admirava. Antes de ir embora para casa, devolvia cada um à sua poça de origem e esperava a maré subir para garantir que ninguém ficaria preso naquelas fendas por mais de um dia.

Meu pai nunca me ensinou a pescar. Acredito que ele também não era muito bom nisso. Porém, ele sempre me acompanhava nas horas que eu passava em lojas de pesca, “namorando” as máscaras de mergulho ovaladas iguais às do Jacques Costeau, experimentando inúmeras nadadeiras e no meu primeiro curso de mergulho, já que eu era novo demais para assinar os papéis da minha credencial.

Décadas se passaram e ainda hoje, quando o mar está tão mexido que não dá para ver mais que uns palmos à frente, eu me contento em ficar observando e fotografando aqueles mesmos peixinhos da minha infância. Muitos mergulhadores demoram a aprender que a beleza do mar também está nos pequenos detalhes. Mesmo em ambientes inóspitos, cada fresta, cada metro quadrado de areia esconde uma gama de pequenos seres que constroem redes de interações e ali passam todo o seu ciclo de vida.

Estamos acostumados a pensar no ecossistema recifal como um campeão de biodiversidade. Na verdade, porém, o fato é que suas águas não são assim tão ricas em nutrientes ao ponto de sustentar tamanha quantidade de espécies. Em 1842, o próprio Charles Darwin observou que a transparência das águas tropicais apontava para a rarefação de nutrientes e microrganismos, o que contrastava com o número de espécies coletadas por ele. Esta análise ficou conhecida como “o paradoxo de Darwin” e vem desafiando os cientistas por mais de 150 anos.

Na busca para por peças deste quebra-cabeça, cientistas da Austrália, Canadá, França e Estados Unidos, liderados pelo ecologista Simon Brandl (Simon Fraser University), analisaram dados coletados durante 20 anos acerca de populações de peixes dos corais de Belize, Polinésia Francesa e Austrália. Neste estudo, publicado pela revista Science no começo de 2019, eles desenvolveram simulações computadorizadas visando a diagnosticar o comportamento de reprodução, desova e crescimento dos menores vertebrados marinhos conhecidos.

O mesmo fascínio da minha infância impulsionou estes pesquisadores. Brandl e seus colegas estudaram um grupo de 17 famílias de minúsculos peixes, incluindo gobies, blenios e cardinais. Denominados de criptobênticos (cripto = escondido; bêntos = vivem perto do fundo do mar), eles podem pesar apenas 0,1 grama quando adultos. Raramente são maiores que um dedo mindinho e quase sempre são camuflados ou muito ágeis em se esconder em qualquer fenda se ameaçados. Por conta dessas características, esses peixes passam despercebidos na maioria dos censos de biodiversidade marinha, o que se reflete em um número reduzido de estudos abordando esses animais.

Apesar de pouco abordados, a bibliografia aponta que esses peixes estão presentes em todos os recifes de corais tropicais, subtropicais ou temperados. Na pesquisa de campo, a equipe de Brandl conseguiu contabilizar até 100 peixes criptobênticos por metro quadrado, com uma média de 15 indivíduos por metro quadrado, o que os tornam o grupo mais abundante de vertebrados dos recifes.

Ao contrário dos animais maiores, as larvas desses peixes não seguem o fluxo das correntes até encontrar um lar propício: elas ficam próximas aos corais onde nasceram. Algumas espécies podem gerar até 7 gerações por ano, o que resulta em um fluxo constante de novos recrutas que são muito eficazes em se alimentar dos poucos crustáceos e algas microscópicas à sua volta e em usar essa energia para o próprio crescimento. Ao levarmos em consideração que a maioria destes animais será devorada antes de completar dois meses de vida, podemos entender a importância deles na cadeia alimentar dos recifes.

“Esses peixes são como doces”, diz Brandl em entrevista à Simon Fraser University. “Eles são minúsculos feixes coloridos de energia que são comidos quase imediatamente por qualquer organismo de recife de coral que pode morder, agarrar ou chupá-los. Nossos dados mostram que esses peixes obtêm muito mais sucesso reprodutivo para cada ovo que produzem, permitindo que suas populações criem um fluxo constante de juvenis que rapidamente substitui todos os peixes adultos que foram comidos”.

De fato, a pesquisa publicada na Science demonstra como os peixes criptobênticos podem responder por até 60% da biomassa de peixes consumidos nos recifes. Isto pode ser a chave para a melhor compreensão de como a cadeia alimentar nos recifes de coral se sustenta com tão poucos nutrientes.

“Os peixinhos criptobênticos são muito importantes na cadeia trófica. Eles crescem e se reproduzem rapidamente, então, são alimento de outros peixes quando ovos, larvas, jovens e adultos”, comenta o Prof. Dr. Sergio Ricardo Floeter do Departamento de Ecologia e Zoologia da Universidade Federal de Santa Catarina.

Mesmo com 70% desses peixes sendo consumidos em uma semana, a alta taxa de reprodução, de crescimento e de aproveitamento dos nutrientes dão a eles uma posição de destaque no equilíbrio do ecossistema. Por um outro lado, por estarem sempre tão próximos aos corais, o monitoramento destes animais pode servir de marcador diante de qualquer agressão mínima aos ambientes recifais.

*Gualter Pedrini é professor universitário, fotógrafo e mergulhador desde 1995. Fundador do Projeto Antrópica, que ajuda a divulgar ONGs e pesquisa científica em prol dos oceanos

Fonte: O Eco