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Opinião

Psicose antiambientalista de Bolsonaro

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*André Trigueiro

Nos manuais de psiquiatria, a psicose é descrita como uma perturbação que impede a pessoa de perceber o que é real. Delírios e alucinações são alguns dos sintomas relacionados à doença. Lançada em 2012, a obra “Psicose ambientalista: os bastidores do ecoterrorismo para implantar uma religião ecológica, igualitária e anticristã”, de autoria do príncipe Bertrand Maria José de Orléans e Bragança – líder do fracassado movimento que pretendeu restabelecer a monarquia no Brasil – poderia ser descrita como uma demonstração dessa patologia na forma de livro.

Ignorando a avalanche de evidências científicas de que experimentamos uma crise ambiental sem precedentes na história da Humanidade, o bisneto da princesa Isabel procurou associar o ambientalismo ao comunismo, entre outras bizarrices, e atribuir aos defensores do meio ambiente a “implantação de um igualitarismo ecologista radical numa sociedade neotribal”.

Na prática, o livro permaneceria hibernando num merecido ostracismo se não caísse nas graças do presidente Bolsonaro, que vem repetindo como um mantra a expressão “psicose ambientalista” em sucessivas entrevistas e declarações. As tentativas enviesadas do príncipe de ideologizar o debate ambiental encontraram campo fértil no atual governo, que vem operando o desmonte sistemático de várias políticas públicas ligadas à proteção da fauna, da flora e dos direitos indígenas.

A chanceler alemã Angela Merkel e o presidente francês Emmanuel Macron teriam ouvido de Bolsonaro – segundo o próprio – que há uma “psicose ambientalista” contra o Brasil, em encontro recente do G-20 no Japão. Ao criticar – sem qualquer justificativa técnica ou metodológica – os dados sobre o desmatamento da Amazônia apurados pelo Inpe (Insituto Nacional de Pesquisas Espaciais), Bolsonaro afirmou que o diretor do instituto estaria “agindo a serviço de uma ONG” e que deseja “preservar o meio ambiente mas não vamos entrar na psicose ambiental”.

Distorção da realidade

Os psicóticos sofrem ao não perceber a realidade que o cerca. Há remédios que podem ajudar. O enfrentamento da “psicose ambientalista” é mais simples, requer basicamente boa vontade de compreender a realidade sistêmica do mundo em que vivemos – confirmada pela ciência sem qualquer inclinação ideológica – e ajustar as políticas públicas ao inexorável determinismo das leis que regem a natureza.

Considerando, por exemplo, os interesses do agronegócio – assunto particularmente caro ao presidente Bolsonaro – é importante entender que a diminuição do número de árvores na Amazônia tem como consequência direta (além do agravamento do efeito estufa) a redução das chuvas que irrigam as lavouras. O desmatamento ilegal, portanto, não é inteligente. Incensado pelos ministros da Agricultura e do Meio Ambiente do atual governo, o controverso e polêmico pesquisador da Embrapa, Evaristo de Miranda, é o primeiro a reconhecer que não é preciso derrubar uma árvore sequer para expandir a fronteira agrícola. Ainda no território do agronegócio, é surpreendente que o Brasil permita a comercialização de agrotóxicos contendo substâncias potencialmente nocivas às abelhas, ameaçando o trabalho silencioso da polinização que garante pelo menos 60% dos alimentos que ingerimos no dia a dia.

Dogma x ciência

Nenhum presidente é obrigado a conhecer os rudimentos da ciência, mas tem o dever de se municiar de informações bem fundamentadas toda vez que alguma decisão de ordem técnica for tomada. Isso vale para as mudanças propostas no Código de Trânsito, projetos de flexibilização do acesso a armas de grosso calibre, ou a indicação do próprio filho para a mais cobiçada das embaixadas brasileiras no mundo. Todas essas medidas propostas pelo presidente causaram polêmica – entre outras razões – justamente por não terem sido acompanhadas de justificativas bem fundamentadas e embasadas.

Na área ambiental, o presidente pode até propor transformar a Estação Ecológica de Tamoios, em Angra dos Reis, numa “Cancún brasileira”; ou abrir caminho para mineradoras americanas explorarem minério em reservas indígenas (como já orientou seu filho Eduardo, antes mesmo do resultado da sabatina no Senado); ou ainda repensar a cobrança da taxa ambiental no Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha (onde seu ministro do Meio Ambiente já autorizou a pesca de sardinha e o voo noturno, apesar de pareceres técnicos contrários do ICMBio). Pode propor tudo isso. Mas quando o faz sem o devido embasamento técnico, dá sinais escancarados de desprezo pela ciência com viés autoritário.

Cuidar: verbo auxiliar de desenvolver

O desprezo do atual presidente pelos assuntos ambientais ficou evidente no período anterior à posse quando, na montagem de sua equipe ministerial, cogitou da possibilidade de não ter um Ministério do Meio Ambiente. Alertado por assessores próximos do imenso desgaste político que isso acarretaria, decidiu manter o ministério, sem entretanto abdicar de sua antipatia pelo assunto. Embora sempre diga que seu governo quer proteger o meio ambiente, esse posicionamento costuma vir acompanhado de alguma ressalva do tipo “mas isso não pode atrapalhar o progresso do Brasil”.

Contrapor os cuidados ambientais ao desenvolvimento é um debate ultrapassado desde o século passado. E um evento definitivo para a compreensão dessa questão se deu há 27 anos, quando Jair Bolsonaro cumpria seu primeiro mandato como deputado federal pelo PDC. Parlamentar pelo Rio de Janeiro, certamente ouviu falar da mais importante conferência da história até então, justamente na capital fluminense. A Rio-92 (Conferência Internacional da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento) reuniu quase 200 chefes de Estado no Brasil. Todos ratificaram no documento final da cúpula o compromisso em favor do desenvolvimento sustentável, aquele capaz de suprir as necessidades das atuais gerações sem comprometer as necessidades das futuras gerações. Esse novo modelo de desenvolvimento, que passou a inspirar governos e empresas, deve compatibilizar os interesses econômico, social e ambiental. Desde então, esse tem sido o norte magnético da bússola da Humanidade. O Acordo do Clima de Paris, os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, e até a Encíclica Laudato Si, do Papa Francisco, são fortemente inspirados nos princípios éticos da megaconfência sediada há quase 30 anos no Brasil.

Único país do mundo com nome de árvore, maior potência megabiodiversa do planeta, nação com maior estoque de água doce e solo fértil, o Brasil reúne todas as condições para ser um líder mundial no desenvolvimento sustentável. Para isso é preciso atrair investimentos que promovam o desenvolvimento limpo, ético e de longo prazo. Isso não será possível sem conhecimento, apreço pela ciência, e a clareza de que o mundo caminha nessa direção.

No último sábado, ao ser questionado mais uma vez sobre seu desejo de transformar uma Estação Ecológica na Baía de Ilha Grande (RJ) numa Cancún brasileira, Bolsonaro disse que apenas “veganos que comem só vegetais” se preocupariam com a questão ambiental. Como se sabe, a realidade não é essa. Não perceber a realidade é sintoma de um grave problema de saúde.

*André Trigueiro é pós-graduado em gestão ambiental pela Coppe/UFRJ e professor de jornalismo ambiental da PUC-RJ. É jornalista da TV Globo e comentarista da Rádio CBN

Fonte: G1