Opinião

Tubarões: vítimas do maior predador do planeta

*Gualter Pedrini

Benedita equilibra-se sobre um pequeno banquinho de madeira enquanto escreve no quadro negro preso à porta do seu restaurante. Sorridente, ela antecipa que teremos tainha assada no cardápio.

Filha e neta de pescadores, Benedita madruga todos os dias para acompanhar a chegada dos primeiros barcos de pesca e conseguir melhores preços antes do tumulto formado por donos de pousadas e restaurantes refinados. Essa estação sempre foi propícia para a pesca da tainha no litoral paulista, mas a cada ano a produtividade tem caído, elevando os preços. Sentada em um banquinho improvisado, ela acompanha o desembarque de caixas e mais caixas com camarão. Nenhum peixe aproveitável.

Ao lado, um senhor de seus 70 anos manuseia uma faca com a mesma habilidade com a qual equilibra e traga um cigarro no canto da boca. Ele rapidamente disseca a cabeça de um peixe corpulento que, mesmo com quase um metro de comprimento, ainda não atingiu a idade adulta. Um tubarão martelo.

A carne de tubarão custa menos da metade do que a senhora Benedita pagaria pela tainha. Cortada em postas, pode ser preparada frita ou assada sob o nome de “cação anjo”.

Os Condrictes, ou peixes cartilaginosos, representados pelos Elasmobrânquios (tubarões e raias) e pelos Holocefálicos (quimeras), surgiram no Período Devoniano, há 400 milhões de anos. Estão entre os mais antigos vertebrados da Terra ainda vivos, tendo sobrevivido a 4 grandes eventos de extinção em massa no nosso planeta.

Ao longo da sua evolução, eles adquiriram características cada vez mais sofisticadas, como as ampolas de Lorenzini, que detectam campos elétricos e alterações ínfimas nos parâmetros físicos e químicos da água. Mas centenas de milhões de anos de sobrevivência não prepararam os grandes predadores dos oceanos para o homem: o grande predador do planeta.

No início do século XX, os tubarões eram abatidos por conta do seu coro e fígado rico em óleo, mas em quantidades módicas. No final do mesmo século, com o advento da pesca industrial, grandes frotas pesqueiras com barcos maiores e mais rápidos propiciaram a exploração de espécies de águas profundas, criando novos mercados para peixes que até então eram descartados em detrimento de outros com maior apelo comercial. Dessa forma, tubarões e raias começaram a ser vendidos como especiarias culinárias sob outros nomes.

O Brasil atualmente é o 11º produtor e o 1º importador de carne de elasmobrânquios em todo o mundo. Assim como no México, ela é vendida sob o nome de “cação”, para não assustar o consumidor. Um estudo realizado em 2015 por pesquisadores da Universidade Federal do Paraná, demonstrou que 70% dos entrevistados desconheciam que o termo “cação” refere-se a tubarão ou raia. Além disso, mais da metade dos entrevistados afirmou que já comeu “cação”, mas que nunca consumiu tubarões ou raias.

Nosso litoral abriga 168 espécies de peixes cartilaginosos e estas representam a maior porcentagem dentre todas as espécies ameaçadas contidas na Lista Vermelha do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). A elaboração desta lista envolveu dezenas de especialistas brasileiros e alertou para o fato de que cerca de 40% dos elasmobrânquios encontram-se ameaçados, juntamente com outros 34% classificados como “dados insuficientes” (não existem informações suficientes para caracterizar risco ou não).

A pesca excessiva e desordenada ainda é a principal ameaça à existência de 90% destes peixes. Mesmo o Brasil sendo um dos maiores produtores mundiais de pescado, a última vez que o governo publicou dados oficiais sobre a pesca foi em 2011, usando dados de 2008. Informações básicas, como volume de pescado desembarcado, espécies capturadas e números de barcos em operação, são na prática inexistentes. Atualmente, todas as pesquisas que abordam as populações de tubarões e raias usam números fornecidos por pescadores e são raras as instituições governamentais que ainda produzem dados confiáveis.

O professor Edris Queiroz, do Instituto de Biologia Marinha e Meio Ambiente (IBIMM), reforça a precariedade de informações e da fiscalização e lembra que esses animais são decapitados e eviscerados antes mesmo do desembarque dos barcos pesqueiros nos portos, o que impossibilita a identificação das espécies e torna esse pescado mais atrativo para a população:

“Quando tem algum acidente no litoral eles chamam de tubarão, mas na hora de vender eles chamam de cação. Mas é tudo igual. Cação é tubarão e raia, independente do tamanho. Alguns possuem sua pesca e venda proibida, como é o caso do tubarão martelo, mas a fiscalização inexiste e os pescadores cortam a cabeça do animal o que dificulta muito a identificação da espécie na peixaria. Ele é vendido como ‘cação fresco’, mas é um tubarão que estava congelados por semanas em grandes barcos pesqueiros”.

Preenchendo lacunas

Em 2015 e 2017, pesquisadores de cinco instituições brasileiras (UNESP, UNIFESP, UFPE, DIMAR, DEPAq), publicaram um estarrecedor trabalho sobre a pesca oceânica de tubarões no Brasil e em todo oceano Atlântico Sul. Eles montaram uma grande base de dados sobre a captura com espinhel (pesca que utiliza uma extensa trama de linhas e anzóis) e outros mecanismos registrados nos diários de bordo de 21 frotas pesqueiras em operação por 33 anos (1979-2011).

Após os anos 90, a redução de algumas espécies do Atlântico Norte como o atum-rabilho e o peixe-espada levaram comissões de gestão pesqueira na América do Norte e da Europa a impor restrições e regulamentações mais severas para a pesca industrial. Isto fez com que a pesca praticada pelos países desses continentes se deslocasse em parte para o sul do Atlântico.

No mesmo período, a ascensão do mercado global de barbatanas de tubarão e a introdução de novas tecnologias extrativistas em águas profundas, impulsionaram a pesca dirigida aos elasmobrânquios. Como resultado, a taxa de captura de quase todas as espécies diminuiu mais de 85% já no final daquela década. Assumindo a ausência de ações de fiscalização ou de conservação desses peixes, o declínio observado nas capturas indicam uma diminuição da abundância do animal no Atlântico Sul.

De 1979 a 2011, 871.177 tubarões de 13 espécies foram registrados como captura em 86.492 conjuntos de espinhel. Estes conjuntos foram implantados por 339 embarcações de 20 frotas diferentes, usando um total de mais de 142 milhões de ganchos.

O tubarão-azul provavelmente é a única espécie que aparentemente ainda não entrou em colapso nas águas do Atlântico. Atualmente ele serve de base para as exportações de barbatanas destinadas ao mercado chinês e consiste em um dos pescados mais baratos que invade a seção de congelados dos hipermercados, com rótulos como: “cação azul”, “cação anjo” ou apenas “cação”. Embora esta espécie não tenha restrições de captura na nossa região, é atualmente o principal alvo das pescarias oceânicas, especialmente nos períodos em que as capturas de outros peixes comerciais são menores.

Mais um título para o Brasil: campeão em consumo de carne de tubarão

  • O Brasil atualmente é o 11º produtor e o 1º importador de carne de tubarão em todo o mundo;
  • Desde 2007 o país não recolhe dados sobre a pesca (salvo raras exceções);
  • Apesar de todas as leis e normativas, diversas espécies ameaçadas de tubarões são pescadas e desembarcadas nos portos sem qualquer fiscalização;
  • O Brasil contribuiu substancialmente para a consolidação do mercado global de produtos de tubarão;
  • México e Brasil são os únicos países em que são vendidas postas de tubarão, sempre com o nome genérico de ‘cação’;
  • A pesca ilegal cresce diante a falta de fiscalização e coleta de dados. Na melhor das hipóteses, o Brasil ocupa a 17ª posição entre os maiores exportadores de barbatanas;
  • Em pesquisas realizadas no sudeste do Brasil 62% dos peixes vendidos ,como garoupa em pedaços ou postas, eram tubarões (após análises laboratoriais).

*Gualter Pedrini é professor, fotógrafo e mergulhador desde 1995. Fundador do Projeto Antrópica, que ajuda a divulgar ONGs e pesquisa científica em prol dos oceanos.

Fonte: O Eco