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Opinião

Filme conta a história dos alimentos que consumimos

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*Amelia Gonzalez

Circula pela internet uma carta/mensagem que teria sido criada pelo governo da Tailândia e contém uma sugestão bem singela que pode ser posta em prática por qualquer cidadão. É mais ou menos assim: depois que acabar de comer qualquer fruta ou mesmo quando estiver cozinhando, separe algumas sementes, lave-as direitinho, ponha num envelope e traga sempre junto a si. Enquanto estiver caminhando em algum lugar que tenha um terreno vazio, espalhe ali as sementes. Com este cuidado, os cidadãos tailandeses podem estar contribuindo para um reflorestamento do país, castigado com um desmatamento causado por empresas de celulose e papel.

Quando recebi a mensagem, que a amiga de uma amiga havia mandado e pedido que fosse replicada, por coincidência eu tinha acabado de ver o documentário “Semente: a história nunca contada”, dirigido por Taggart Siegel e Jon Betz. O filme é muito bonito, talvez alguns se queixem pelo fato de ter uma hora e meia de duração, mas não considero ter perdido qualquer minuto quando assisti. Ainda há muito que aprender sobre a verdadeira forma como o homem moderno passou a se alimentar, e o filme se propõe a nos contar esta história com uma visão bem crítica. Sobretudo ao período depois da 2ª Guerra, quando começou a Revolução Verde, que começou no México, segundo o economista Raj Patel, não como um manifesto ecologista.

Neste tempo, pequenas quantidades de sementes eram vendidas pelos agricultores para as grandes corporações. Sem perceber, estavam comercializando seu conhecimento, adquirido em anos de prática, de contato com a terra, percebendo as variantes, os humores das sementes por causa do clima, da seca, das tempestades.

Todo este saber, no entanto, não era considerado importante pelos próprios homens simples que passaram a se dar pouco ou nenhum valor quando, de hora para outra, foi criado o primeiro milho híbrido, muito maior do que os outros. Na verdade, a modificação nos genes foi feita para que tais sementes pudessem suportar mais agrotóxicos, necessários porque a plantação se torna vulnerável quando é monocultura.

“Confiar sua semente a terceiros é confiar sua alma a terceiros. É na semente que tudo começa, e não se dar conta disso é uma grande abdicação de controle e responsabilidade. Foi o que fizemos”, constata Will Bonsall, do Scaterseed Project.

O documentário tem três partes bastante definidas. Começa mostrando histórias de pessoas que dedicam toda sua vida a armazenar sementes, criando uma espécie de Arca de Noé para um futuro – que pode chegar, acreditam – em que seja preciso recuperá-las, em que todo o planeta tenha sido degradado, sobretudo por causa do excesso que as grandes corporações alimentícias vêm cometendo. A informação é preocupante: já perdemos 94% das variedades de sementes, somente no século XX.

Entre os guardiães de sementes, é claro, há muitos indígenas, que têm com a fonte de toda sua alimentação uma relação de profundo respeito. Faz sentido.

“Quando meu pai morreu, me disse: tenha sempre sementes no bolso porque semente é vida. Se você tiver sementes no bolso, pode andar e comer sementes. Se só tiver dinheiro, não vai poder comer o dinheiro”, disse Emigdio Ballon, líder do povo Tesuque, no Novo México.

A segunda parte do documentário começa depois de uns 50 minutos, quando os cineastas passam a responder à pergunta: e por que as sementes se acabaram? Não há outra explicação que não sejam os agrotóxicos. Seguem-se relatos que sempre me deixam muito impactada, depoimentos de pessoas que vivem na pele o horror praticado pelas empresas que usam e abusam dos pesticidas, sem levar em conta as queixas e mesmo o resultado de estudos que demonstram como são nocivos à saúde de homens, animais, plantas.

No Havaí, a Monsanto mantém um campo de teste para tais venenos, junto a comunidades que ali estavam há tempos, cultivando cana de açúcar. Gary Hooser, político bastante atuante da comunidade, que chegou a se candidatar ao cargo de vice-governador do Havaí, conta que nas reuniões com as empresas elas negam que estejam fazendo testes com pesticidas. Negam que os produtos que estão usando sejam nocivos à saúde, mas se recusam, terminantemente, a dizer o tipo de substância que estão borrifando na terra.

“Quanto mais mentiras eu ouvia, mais me dava vontade de agir, e foi assim que fiz o Projeto de lei que exige transparência das corporações. Fizemos uma audiência em que representantes executivos ficaram calados o tempo todo, e no final disseram apenas: ‘Não quero me sujeitar ao projeto do jeito que ele foi escrito’. No fim, elas processaram o condado de Kauai para poderem borrifar veneno em terrenos que ficam próximos a escolas. E são as maiores companhias do mundo. Vamos ter muita luta pela frente”, conta ele.

A omissão da indústria de agrotóxicos aliada ao fato de que as sementes transgênicas foram criadas sem que a maioria da população o pedisse são duas questões que causam indignação a Vandana Shiva, filósofa, ambientalista e criadora do Banco de Sementes Navdanya, na Índia.

“Usei Ghandi como inspiração quando criei o Navdanya em 1987. Ele tinha enfrentado o imperialismo britânico usando a roca de fiar. Os indianos se libertariam pois fiariam o próprio tecido. Eu resolvi que iríamos guardar nossas sementes. A semente vai ser a roca de fiar de nossa época. Vamos nos recusar a obedecer leis que nos obriguem a aceitar patentes e sementes modificadas. Vamos dar liberdade às sementes”, disse ela.

O papel das corporações neste imbróglio tem omissões, recusas, agressões. E vamos assim, sem querer, deixando de perceber que as corporações são constituídas por pessoas. Em que momento as deixamos assumir papel tão poderoso em nossas vidas, a ponto de permitir que ditem as regras também em nossa alimentação? Em que momento passamos a distingui-las como vilãs, quando assaltam o meio ambiente e fazem estragos, como a Vale em Mariana e Brumadinho?

Esta pergunta me leva ao início de meus estudos sobre o movimento que chamamos hoje de desenvolvimento sustentável e que, no início do século, chegou ao Brasil com a capa de “Responsabilidade Social Corporativa”.

E dia desses, conversando com amigos sobre todo este processo, agora já longo, uma delas cutucou-me com uma sugestão que passo adiante, aos leitores, e que pretendo seguir. Para ela, já está mais do que em tempo de revermos o documentário “The Corporation” , dirigido por Mark Achbar e Jennifer Abbott, agora em versão completa na web. Sim, vale a pena conferir.

*Amelia Gonzalez é jornalista

Fonte: G1