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Opinião

ONG italiana mostra a crueldade da indústria no abate de peixes confinados

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* Amélia Gonzalez

Abandonar completamente o consumo de proteína animal é uma decisão que vem sendo adiada por mim porque tenho medo de que meu organismo sinta falta. Mas não vai demorar muito. Há uma década não como carne vermelha, evito bastante a de porco. Galinha e peixe ainda entram no meu cardápio, mas não é um consumo diário. Sinto-me bem com isso, fisicamente, e melhor ainda quando penso que, dessa forma, não estou colaborando para aumentar os abusos que a humanidade comete contra os animais, pelo simples fato de julgá-los seres inferiores.

Esta última reflexão não é minha, mas de Yuval Noah Harari, historiador que escreveu “Sapiens – Uma breve história da humanidade” (já encontrado até em versão pocket editada pela L&PM), uma obra que merece ser revisitada sempre. Ontem de manhã eu o tirei da estante, quando li, no “The Guardian” , a notícia de que uma ONG italiana, a Essere Animali, fez uma visita a uma fazenda de piscicultura intensiva e gravou um vídeo mostrando imagens chocantes de maus-tratos a peixes. Antes que você, caro leitor, torça o nariz a me julgar uma radical a defender animais marinhos, quero lembrar que as últimas evidências científicas mostram que os peixes sentem dor e sofrimento.

Aquela cena bucólica, de pescadores com linhas e anzóis trazendo peixes para a orla em barcos de madeira já se torna “coisa do passado” em muitas regiões. A demanda por peixes, que em 2012 já era de 62 milhões de toneladas/ano, segundo o World Resources Institute, deverá chegar a 140 milhões em 2050.

Isto quer dizer o seguinte, caros leitores: não há mais peixes selvagens nos mares e rios em quantidade suficiente para alimentar a população humana. Daí, com inteligência e tecnologia, armas que os peixes não têm, os humanos foram criando formas de confiná-los e forçar a reprodução aos montes. Como acontece com os bois, as galinhas e os porcos.

Até aí, a notícia pode parecer até alvissareira, levando em conta que muitos de nós – e eu ainda me incluo nesta lista – ainda nos sentimos dependentes, organicamente, da proteína dos peixes. Só que dois ingredientes são acrescentados a esta “receita de sucesso”: a ganância e a crueldade. Sem se importar com ciclo de vida, muitos humanos estão forçando a criação de peixes de maneira a provocar neles um sofrimento real antes de morrer.

“O vídeo mostra gaiolas enormes separadas de sargos, robalos e trutas sendo retirados de redes apertadas, antes de serem despejados em recipientes plásticos, e deixados lentamente para asfixiar. Muitos passam seus últimos momentos se batendo no chão. Alguns dos peixes que sobrevivem sofrem uma sufocação que aparentemente pode durar até uma hora em lajes ou recipientes cheios de lama e gelo no matadouro. A filmagem mostra que alguns são eventualmente mortos com golpes na cabeça de bastões de metal. Ele também mostra ovas de peixe sendo espremidas manualmente de alguns peixes. Ativistas acreditam que isso seria estressante para os animais”, descreve a reportagem do Guardian.

Yuval conta que, ao todo, dezenas de bilhões de animais de criação vivem hoje como parte de uma linha de montagem mecanizada, e cerca de 50 bilhões são abatidos anualmente. Esses métodos industriais de criação de animais levaram a um nítido aumento na produção agrícola e nas reservas de alimento dos humanos. Ao mesmo tempo, conta ele, “um número cada vez menor de agricultores é necessário para alimentar um número crescente de pessoas. Hoje, nos Estados Unidos, apenas 2% da população vivem da agricultura”.

Apesar de marcar sempre, com letras fortes, o impacto que a industrialização tem causado ao meio ambiente, o historiador põe em evidência que o homo sapiens foi e ainda é “a espécie mais mortífera nos anais da biologia”. É uma honra duvidosa, conclui ele. Concordamos.

A questão da Essere Animali é tentar mostrar, com o vídeo que traz imagens horríveis, a necessidade que se tem de criar leis ou regulamentos para proteger os peixes. Manifestos serão ouvidos e uma campanha nacional de petições será lançada com este objetivo. A ONG não descarta, inclusive, protestos de rua:

“Os cientistas – e até mesmo a UE – descobriram que os peixes sentem dor. A maioria dos cidadãos europeus concorda conosco, que é hora de dar a eles pelo menos os direitos básicos que os animais terrestres têm”, disse Claudio Pomo, co-fundador da Essere Animali , à reportagem do “The Guardian”.

Foi em 2009 que a União Europeia descobriu que os peixes sofrem. E, num relatório publicado no início deste ano, está escrito: “Os animais devem ser poupados de qualquer dor, angústia ou sofrimento evitáveis durante o abate e operações conexas “. Você, caro leitor, pode estar se perguntando: mas como é que se evita dor ao matar um animal?

A tecnologia, esta invenção humana, dá conta de responder a esta pergunta. É possível aplicar algum “método de atordoamento” antes de abater o bicho, coisa necessária para evitar que ele perceba a morte. Mas, acima de tudo, é preciso acabar com algumas práticas criadas pela indústria para facilitar seu próprio lucro sem prestar atenção à vida de quem vai morrer para nos alimentar. Tem que cuidar, por exemplo, da qualidade da água em que esses peixes ficam. Tem que evitar fazer o bombeamento, o que quer dizer ligar bombas que fazem um barulho terrível enquanto eles estão lá, num tanque, sem condições de fugir para canto nenhum. Outra prática, a asfixia no gelo, é usada em grande parte na Grécia, Espanha e Itália. E é de uma crueldade sem limites, assim como o método de espremer o peixe ainda vivo para tirar dele as ovas.

As estimativas do número de peixes mortos globalmente em fazendas comerciais a cada ano variam de 37 a 120 bilhões, com até 2,7 trilhões de peixes capturados na natureza. Estes números bastam para que se reflita um pouco a respeito dos métodos de abate desses seres vivos.

Diz Yuval Noah Harari: “Ao contrário de seus equivalentes terrestres, os grandes animais marinhos sofreram relativamente pouco com a Revolução Cognitiva e a Revolução Agrícola. Mas hoje muitos deles estão prestes a se extinguirem em consequência da poluição industrial e do uso excessivo por parte dos humanos. Se as coisas prosseguirem no ritmo atual, é provável que baleias, tubarões, atuns e golfinhos sigam os diprotodontes, as preguiças-gigantes e os mamutes rumo ao desaparecimento”.

E nós com isso? O resultado direto é a inviabilização da vida humana no planeta, já que dependemos de todas as espécies para estarmos por aqui.

E o que podemos fazer? Refrear o consumo, neste caso específico, de carne de peixe, uma forma de forçar a indústria a ser mais cuidadosa e consciente. É possível, e vou começar hoje mesmo.

* Amélia Gonzalez é jornalista

Fonte: G1