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Opinião

Consumo elevado de enguias no verão japonês expõe risco de extinção da espécie

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*Amélia Gonzalez
No Japão, as estações do ano são bem marcadas. Agora, por exemplo, os japoneses estão vivendo o verão, que é sempre muito quente e úmido. Para enfrentar o calorão – chegam, sim, à casa dos 40ºC – os japoneses cultivam um hábito milenar: comer enguias, um peixe de água doce. A crença é que uma enguia cortada, mergulhada num caldo agridoce, comida com arroz, serve para dar mais energia e frescor ao cidadão.

Ocorre que as enguias estão se acabando. Mais uma vez recorro à fábula da Tragédia dos Bens Comuns para começar a costurar o meu texto: é quando a humanidade decide se acabar de comer ou usar algum bem natural sem querer saber se mais gente vai precisar dele. Sim, é o que está acontecendo no Japão, segundo reportagem publicada no site do The Guardian. E o "Dia do Boi", que se comemora no solstício, diz a reportagem, pode ser uma ocasião perfeita para se repensar no consumo das enguias, que vem se mostrando insustentável.

A reflexão é puxada pelo professor Kenzo Kaifu, da faculdade de Direito da Chuo University, e convida a ser compartilhada justamente por fugir ao senso comum. Dir-se-ia que os japoneses precisariam comer menos enguias para que elas sobrem para todo mundo? Kaifu prefere voltar as vistas para outro ponto. E alerta para o que pode ser considerada uma verdade, sem ser. E se, em vez de ficar se culpando pelo fato de estar comendo enguias no Dia do Boi, o cidadão japonês refletir sobre o que não tem sido feito pelas autoridades competentes para coibir a pesca predatória de enguias?

"Se quisermos utilizar as enguias japonesas de forma sustentável, precisamos reduzir nossos níveis atuais de consumo. E se consumidores individuais começarem a comer enguias com menos frequência, o consumo pode diminuir. Mas as reduções no consumo de enguia não devem ser alcançadas através de avanços no manejo da pesca e outras reformas sociais sistêmicas? Sociedades que estabelecem limites apropriados ao consumo e permanecem dentro desses limites alcançarão a sustentabilidade. Sociedades que deixam livre o consumo, na base de "pegue tudo o que você quiser pegar" e tentam reduzir o consumo através do comportamento individual do consumidor não podem ser consideradas sustentáveis", escreveu ele.

O professor Kaitu vai além: para ele, o cidadão comum que desejar mudar este cenário e abraçar a causa de um consumo sustentável das enguias precisa, basicamente, se manter bem informado sobre isso:

"Podemos influenciar nossa legislatura e agências governamentais para que façam o problema da enguia virar prioridade. Isto exige que nos tornemos mais bem informados sobre as enguias japonesas, que pensemos sobre o assunto a partir de nossas próprias perspectivas e as compartilhemos com o maior número de pessoas possível".

Talvez o professor tenha se inspirado, para este comentário, no texto da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), adotada na 76ª Conferência Internacional do Trabalho em l989, que se tornou o primeiro instrumento internacional vinculante que trata especificamente dos direitos dos povos tradicionais. Neste texto há um artigo que diz o seguinte:

"Sempre que necessário, os governos garantirão a realização de estudos, em colaboração com os povos interessados, para avaliar o impacto social, espiritual, cultural e ambiental das atividades de desenvolvimento planejadas sobre eles. Os resultados desses estudos deverão ser considerados critérios fundamentais para a implementação dessas atividades".

Serve para os índios, para os quilombolas, para povos tradicionais… e para todos aqueles que querem refletir um ponto além da curva. Já me explico.

Os cidadãos comuns afetados pelas causas do meio ambiente devemos nos responsabilizar, sim, por fazer a parte que nos cabe para não afundarmos ainda mais em eventos extremos que já vêm tirando a vida de muita gente. Isso é bom, envolve uma mudança radical de hábitos de consumo que pode ser muito boa até mesmo para nosso dia a dia. Afinal, andar menos de carro e fazer exercício, quer seja de bicicleta ou a pé, não apenas vai ajudar a baixar as emissões, a despoluir o ar e a manter o aquecimento num nível ainda suportável, como também a manter suportáveis para nosso organismo os níveis de colesterol e triglicerídeos.

Mas é importante também, e muito, que se tenha foco na responsabilidade que os governantes precisam demonstrar para ajudar nesta mudança. Enquanto não vemos nas plataformas daqueles que querem se candidatar a qualquer cargo público menções sobre políticas que possam criar formas diferentes de se produzir ou consumir, é desnecessário dizer o quão pouco serão eficazes nossas singelas iniciativas. E, sim, aí é preciso atuação de cidadãos, na cobrança de tais políticas. E, como o voto é a arma, vamos usá-lo.

O segundo foco deve ser dado às empresas, cuja atuação é igualmente importante. No caso da pesca, elas precisam evitar a forma predatória com que se lançam a este bem comum.

Mas este texto estaria sem pé nem cabeça se eu não fizesse menção à matança absurda que os próprios japoneses, agora preocupados com a provável extinção das enguias, fazem às baleias. No segundo semestre do ano passado, 177 baleias foram mortas na costa do Pacífico pelos japoneses que alegaram, para o crime absurdo, "fins científicos". Este ano, o crime foi cometido contra 333 Minke, sendo 122 grávidas. O mundo se revolta com tais imagens, mais ainda quando sabe que o método utilizado para matar as baleias é cruel, com granadas explosivas colocadas na ponta dos zarpões. O sofrimento é profundo e, como bem diz Yuval Noah Harari , historiador de "Sapiens – uma breve história da humanidade", é imoral a maneira como tratamos os bichos, só porque os consideramos seres inferiores.


*Amélia Gonzalez é jornalista

Fonte: G1