Opinião

Belo Monte vai sair? O governo garante

*Lúcio Flávio Pinto

Este era para ser um ano de pique de obras no canteiro da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará, o maior do país. É provável que não seja mais. Os sucessivos incidentes com os índios e os grupos que se opõem à usina retardaram o cronograma físico e provavelmente influirão também sobre o cronograma financeiro de um empreendimento que já se aproxima da duplicação do valor inicial de projeto, que era de 16 bilhões de reais (passou para R$ 19 bilhões no leilão e já se aproxima de R$ 30 bilhões na mais recente atualização).

Mas talvez seja uma avaliação errada a dos que imaginam que o retardamento cresça e possa até levar ao cancelamento da iniciativa, principalmente sob o impulso das manifestações de protesto pelas ruas do Brasil. Parece que, quanto a Belo Monte, a posição do governo é de partir para o confronto, se a sempre alegada solução negociada se inviabilizar. A margem de tolerância do governo nessa negociação é curta. Ela presume a existência da hidrelétrica. Admite apenas compensações e mitigações.

Ao contrário do perfil traçado no edital de leilão, Belo Monte já não é mais uma realização da iniciativa privada com endosso oficial. Ela se tornou um projeto de governo, estratégico e prioritário, uma condição para a realização de uma das metas principais do PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento. Assim como Lula a considerou uma questão fechada, a presidente Dilma Rousseff não abre mão dela. Pelo contrário: a impõe. Daí provavelmente ter se recusado a receber os índios Munduruku, que tentaram falar com ela em Brasília para apresentar-lhe sua posição.

Os índios não só reivindicariam a paralisação de Belo Monte como lhe antecipariam sua disposição de impedir que comece a construção das sete usinas previstas para o vale do Tapajós, abrangendo suas terras. Na eventualidade desse confronto, a presidente não deixaria de lhes dizer (ou advertir) que a obra prosseguirá. Essa certeza se fundamenta no uso de tropa federal, com ênfase na nova estratégia com o concurso da Força Nacional de Segurança, mas também através do uso de instrumentos de coerção, sedução e cooptação. O alvo principal seriam as populações locais, indígenas e não indígenas, mais suscetíveis a essa atração.

A reestatização de Belo Monte foi constante e crescente desde o leilão. Como explicar que depois de ter glorificado a parceria com a iniciativa privada, o governo a tenha substituído quase integralmente? Não foi uma decisão espontânea, tomada por iniciativa própria. Foi necessária para preencher o vácuo criado pela desistência dos sócios do consórcio vencedor no leilão. A explicação mais evidente para esse movimento foi a complexidade da obra e o seu encarecimento como efeito das mudanças de projeto. Talvez não haja outro exemplo de uma hidrelétrica tão grande, dimensionada para ser a terceira maior do mundo, funcionando a fio d’água, sem a estocagem de água suficiente para manter sua geração firme durante o longo período de decréscimo da vazão do rio. Na fase crítica, o Xingu não terá água corrente para manter em atividade as 24 turbinas da usina.

A redução drástica do reservatório foi o argumento utilizado pelos projetistas para calar as denúncias de que Belo Monte acarretaria um grande impacto ecológico, social e antropológico na região. Com uma inundação que representaria apenas a perenização das cheias do rio, a hidrelétrica deixaria de ser uma obra suja, consagrando-se como fonte de energia limpa.

O problema é que essa alteração exige a abertura de canais artificiais fora do leito do Xingu, na volta grande que o rio dá a jusante do vertedouro principal do complexo, no sítio Pimental. Essa é uma delicada e desafiadora obra de energia, inédita na construção de grandes barragens na Amazônia. Talvez os engenheiros estejam seguros do que estão fazendo, mas não transmitiram até hoje essa confiança à opinião pública.Ao que parece, nem estão mesmo preocupados com isso: em matéria de relacionamento do seu corpo técnico com a sociedade, Belo Monte consegue ser mais autoritária do que foi Tucuruí, no rio Tocantins, em plena ditadura.

Se as coisas estivessem fluindo harmonicamente, conforme as previsões originais, as grandes empreiteiras não teriam desistido do domínio da concessão licitada e voltado à sua condição tradicional de empreiteiras, faturando com as encomendas do construtor e operador da usina. Empresas estatais do setor elétrico, fundos de pensão e instituições públicas as substituíram no controle da Norte Energia. Com isso arrastando em seu favor dinheiro público.

Daí o aval do BNDES, que assegurou R$ 22,5 bilhões quando o orçamento da usina chegou a R$ 28,9 bilhões. É uma situação original: o agente financeiro assegura 80% do total independentemente de saber a quanto monta a conta final. Não interessa: o governo garante. Garante mesmo? É o que estará em questões nos próximos capítulos dessa novela milionária.


*Lúcio Flávio Pinto é jornalista paraense e editor do Jornal Pessoal

Fonte: Mercado Ético