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Memória subterrânea

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O jornalista Marcelo Freitas tem 50 anos. Dedicou 21 deles a recontar os bastidores do Massacre de Ipatinga, capítulo mal explicado da história de Minas Gerais. O conflito, que completa 46 anos no próximo dia 7, seria candidato certo ao limbo, não fosse o empenho do repórter em descobrir o que realmente ocorreu. O assunto havia sido abordado na imprensa alternativa mineira nas décadas de 1970/1980, fora manchete de jornais da capital e do Vale do Aço nos anos 1960. No entanto, observa a historiadora Lucília de Almeida Neves Delgado, o fato permaneceu quase totalmente relegado ao esquecimento oficial, a despeito de ter sido marcante na trajetória dos trabalhadores brasileiros.
Atualmente professor de jornalismo da Faculdade Estácio de Sá, Marcelo Freitas publicou reportagens sobre o massacre em 1988, no jornal Hoje em Dia, e em 2003, no Estado de Minas. Segunda-feira, ele lança o livro Não foi por acaso (Comunicação De Fato Editora). Mais uma vez, joga luz sobre as memórias subterrâneas de Minas Gerais. Desta vez, agrega ao relato jornalístico o enfoque científico.
O livro é fruto da dissertação de mestrado do autor para o Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC Minas. De um lado, presta tributo a John Hersey, autor de Hiroshima, clássico do jornalismo literário, ao resgatar a saga de vítimas e seus familiares. De outro, busca amparo no historiador francês Michael Pollak, no sociólogo espanhol Manuel Castells, no sociólogo francês Maurice Halbwalchs, no sociólogo alemão Georg Simmel, no urbanista americano Mike Davis, na historiadora Lucília Neves e na antropóloga Tereza Caldeira Pires, entre vários estudiosos, para interpretar os fatos à luz da realidade sócio-política do Brasil, de Minas Gerais e da Ipatinga dos anos 1960.
BARRIL
Marcelo prova que o massacre não foi apenas um incidente que acabou em desgraça. Espécie de crônica da tragédia anunciada, o livro não deixa dúvidas: o confronto entre trabalhadores e agentes repressores – seja Polícia Militar, seja o serviço de vigilantes da Usiminas – não surgiu do acaso. “Há muito Ipatinga era um barril de pólvora prestes a explodir”, ressalta o autor. Em outubro de 1963, o operador de laminador Rodir Rodrigues foi barrado na portaria da Usiminas. Vigilantes exigiam-lhe a carteira de identidade, que acabou retida. Policiais militares passavam pelo local, assistiram à confusão e, a pedido dos seguranças, tentaram prender o rapaz. Ele tentou fugir, mas foi alcançado e espancado.
O fato se deu à noite, o operário foi transferido para o Serviço de Vigilância da empresa. A pontapés, acabou enfiado em um jipe e transferido para o quartel. Funcionário viu a confusão e se queixou ao encarregado da segurança. “É preciso consertar essa turma de safados”, ouviu em resposta. A cena da prisão do colega revoltou os trabalhadores. Encerrado o incidente na troca de turno, dois policiais militares foram mandados para o alojamento. Recebidos a pedradas por 300 trabalhadores, solicitaram reforço. O sargento Carlos Alberto Xavier e cavalarianos da PM prenderam o grupo. Mais tarde, policiais militares invadiram alojamentos onde trabalhadores dormiam. Houve violência e feridos.
Comandante do destacamento da Polícia Militar em Ipatinga, o capitão Robson Zamprogno não conseguiu chegar ao ponto mais alto do alojamento – a essa altura, barricadas impediam a passagem. Tiros foram disparados para amedrontar os entrincheirados. A confusão persistiu, Zamprogno decidiu remover as centenas de presos para o Serviço de Vigilância da Usiminas, em vez do quartel da PM.
Marcelo conta que a notícia da prisão assustou Gil Guatimosim, diretor de Relações Industriais da Usiminas. O padre Avelino chegou ao local, tentando apaziguar os ânimos, e conseguiu um acordo precário. Guatimosim pediu aos trabalhadores que se apresentassem no dia seguinte ao escritório, levando suas queixas. De manhã, o ambulatório recebeu vários feridos das escaramuças da noite. Temia-se a invasão do Serviço de Vigilância pelos empregados, enquanto trabalhadores se aglomeravam no portão do almoxarifado da Usiminas. Chegaram reforços policiais a esse local, junto à rodovia MG-4, atual BR-381.
Cerca de 2 mil pessoas estavam reunidas no portão por onde o caminhão da polícia entraria. O operador de aciaria Pedro Butilheiro e o tenente Jurandir de Carvalho discutiram, o policial determinou o deslocamento do veículo para 100 metros adiante. Separados pelo muro, havia a multidão de trabalhadores, dentro da empresa, e os policiais, do lado de fora, enquanto o pessoal do novo turno chegava, formando outra aglomeração e sitiando os PMs.
Montou-se fuzil-metralhadora sobre o caminhão da polícia. Cresce a tensão, mas o tenente Jurandir não concordou em se retirar do local. Alegou, posteriormente, que não queria ser responsabilizado por eventuais danos ao patrimônio da empresa. Às 9h50 de 7 de outubro de 1963, a tragédia: pedradas e tiros são trocados na frente da Usiminas. O tenente Jurandir negou ter autorizado o tiroteio, mas alega que, diante da “agressão injusta”, cada comandando agiu por conta própria. Oficialmente, contabilizaram-se oito mortos e 79 feridos. Pessoas que passavam pelo local foram atingidas, inclusive Antonieta Martins, que estava a um quilômetro da concentração dos trabalhadores. O tiro matou o bebê Eliana, que ia na colo da mãe.
A tragédia ganhou páginas de jornais da época, rendeu comissões de inquérito na Assembleia Legislativa, gerou Inquérito Policial Militar e processo judicial no Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Policiais foram absolvidos. A Usiminas alegou que o incidente ocorreu em uma das portarias fora das dependências da empresa, sem qualquer envolvimento da siderúrgica. A empresa argumentou também que o fato envolveu operários de empreiteiras e a polícia da região.
GOLPE MILITAR
Poucos meses depois do incidente, o golpe militar de 1964 mudou o panorama político do país. Encoberto pelo medo e pelo silêncio, o massacre se tornou tabu no Vale do Aço. Marcelo Freitas está convicto de que a tragédia não