Entrevistas

Quem ganha com a mineração em terras indígenas?

Quem ganha com a mineração em terras indígenas?

Em 35 anos, a área ocupada pela mineração cresceu seis vezes no Brasil. A maior parte desse crescimento se deve ao garimpo, que avança sobre áreas protegidas na Amazônia. Na última década, a área ocupada pela atividade em unidades de conservação aumentou 300%, e aumentará ainda mais se o Projeto de Lei 191/2020, que libera mineração em terras indígenas, for aprovado.

Para Suely Araújo, especialista em políticas públicas do Observatório do Clima, “a intenção do governo [autor da proposta] é legalizar a atuação de garimpeiros nessas áreas, o que afronta a Constituição Federal e gerará muitos conflitos sociais, além de degradação ambiental irreversível. As cicatrizes do garimpo são eternas”, afirmou em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos (IHU).

Suely ressalta que a maior parte da mineração nessas áreas, sempre ilegal, é voltada para o garimpo de ouro. Um estudo recente mostrou que a produção ilegal de ouro causa R$ 31,4 bilhões em prejuízos socioambientais ao Brasil. Estima-se que em apenas dois anos, mais de 48 toneladas de ouro ilegal foram vendidas no país e 21 mil hectares foram desmatados na Amazônia pela atividade.

“Quanto custa a reparação de uma bacia hidrográfica contaminada por mercúrio? Quem ganha com isso? Os indígenas, os ribeirinhos e a população da Amazônia, vista de forma ampla, tenho certeza de que só perdem”, questionou.

Confira a entrevista completa:

IHU – A que atribui a insistência do governo federal em propor a liberação de mineração em terras indígenas

Suely Araújo – O presidente Bolsonaro sempre defendeu a expansão de grandes empreendimentos nas terras indígenas. Sua visão de mundo afasta a defesa desses territórios como fatores importantes para a manutenção dos direitos e da cultura dos povos indígenas e para a proteção do meio ambiente. Mais do que isso, a intenção do governo é legalizar a atuação de garimpeiros nessas áreas, o que afronta a Constituição Federal e gerará muitos conflitos sociais, além de degradação ambiental irreversível. As cicatrizes do garimpo são eternas.

IHU – Por que há um aumento recente do interesse pela mineração nessas terras também por parte das empresas?
Suely Araújo – As empresas mineradoras ficam testando até onde podem ir. Cabe à sociedade colocar os freios. Em relação ao projeto de lei em pauta na Câmara dos Deputados (PL nº 191/2020), as empresas de maior porte estão voltando atrás. O Instituto Brasileiro de Mineração – IBRAM lançou nota recente se posicionando contra o projeto de lei. Afirmaram que a lei sobre o tema deve ser amplamente debatida pela sociedade brasileira, especialmente pelos próprios povos indígenas, respeitando seus direitos constitucionais. Vamos ver se mantém esse posicionamento nos próximos meses.

IHU – Quais são as estimativas sobre jazidas minerais em terras indígenas e sua viabilidade econômica?

Suely Araújo – Não sou especialista em mineração, minha área é legislação e política ambiental. Há terras indígenas espalhadas pelo país, o que dificulta estimativas tão gerais. Uma matéria recente do Poder 360 afirma que pedidos de mineração atingem 197 terras indígenas na Amazônia. O governo assume uma narrativa distorcida, como se os empreendimentos minerários só tivessem viabilidade nas terras indígenas, o que é um absurdo. Estão tentando claramente impor argumentos falsos na discussão sobre a mineração de potássio e outras substâncias usadas na fabricação de fertilizantes, fazendo referência à suposta falta desses produtos em razão da guerra da Rússia e Ucrânia. Tudo isso faz parte de uma estratégia maior, na minha opinião, de implosão dos direitos socioambientais assegurados pela Constituição de 1988.

IHU – Quais são suas principais críticas ao PL 191/20, que propõe a regulamentação da mineração, a geração de energia elétrica e a exploração e produção de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos em terras indígenas?

Suely Araújo – Em primeiro lugar, a proposta não foi debatida com os representantes dos povos indígenas. Além disso, o texto é extremamente frágil, não assegura os cuidados necessários nem com as comunidades, nem com o meio ambiente. Foi redigido para viabilizar a atuação dos garimpeiros nesses territórios, o que colide com o art. 231, § 7º, da Constituição. A proposta do governo está muito longe de ter o conteúdo adequado para disciplinar a mineração em terras indígenas e não foi concebida por meio do necessário processo participativo.

IHU – Quais são os principais riscos envolvidos na mineração em terras indígenas?

Suely Araújo – Danos ambientais irreversíveis e aumento dos conflitos sociais. O governo, além da legalização dos garimpos em terras indígenas, quer implodir com as regras que disciplinam o licenciamento ambiental no país. Já aprovaram texto na Câmara dos Deputados nesse sentido, que se encontra sob análise do Senado Federal. Uma lei disciplinando a mineração em terras indígenas, que observe todos os cuidados técnicos necessários e seja amplamente debatida com os indígenas e a sociedade como um todo, deve ser elaborada em outro governo, que não se paute pela destruição dos direitos socioambientais.

IHU – Pode nos dar um panorama sobre o garimpo ilegal em terras indígenas no país? Em que regiões esses garimpos predominam e quais são seus efeitos nas comunidades?

Suely Araújo – Os alertas de garimpos ilegais em territórios indígenas cresceram 125% no governo Bolsonaro, segundo dados divulgados recentemente. Eles sempre existiram, mas estão explodindo em quantidade e gravidade da degradação, impulsionados pelo discurso do próprio presidente da República.

IHU – Por que e em quais Terras Indígenas a mineração é mais visada?

Suely Araújo – A maior parte da mineração nessas áreas, sempre ilegal, é voltada para garimpo do ouro. Há muita pressão no território Munduruku, no Pará, por exemplo. Na terra dos Ianomâmis, nos estados do Amazonas e Roraima, também. Mas o garimpo está avançando sobre várias terras indígenas e sobre Unidades de Conservação. A causa mais relevante talvez seja a ausência do Estado. A Amazônia está completamente largada pelo governo federal e os governos estaduais também não atuam com a força necessária contra atividades ilegais.

IHU – Por quais razões a mineração em terra indígena não deve ser permitida?

Suely Araújo – A mineração com regras, cuidados ambientais e com a devida oitiva das comunidades indígenas pode vir a ocorrer no futuro, quando o país debater com a devida responsabilidade as regras sobre esse tema. Realmente, não acho que seja a destinação ideal para terras indígenas, mas não há como proibir tudo, até mesmo porque há previsão na Constituição de lei sobre o tema. Garimpeiros destruindo o meio ambiente e impulsionando conflitos não devem ser aceitos; a Constituição inclui restrições nesse sentido. O país deveria se preocupar em enfrentar as invasões das terras indígenas, em retomar as políticas de proteção dessas comunidades, no lugar de discutir como usar essas terras para mineração, hidrelétricas e outros empreendimentos degradadores.

IHU – Quais são as consequências da extração mineral em terras indígenas onde esse processo já está acontecendo?

Suely Araújo – Degradação ambiental e social, conflitos entre os próprios indígenas, contaminação dos recursos hídricos, problemas de saúde pública. É um quadro muito triste de devastação. Quem vai responder por esses problemas? Quem vai reparar os danos, que sequer podem ser mensurados por serem intensos e difusos? Quanto custa a reparação de uma bacia hidrográfica contaminada por mercúrio? Quem ganha com isso? Os indígenas, os ribeirinhos e a população da Amazônia, vista de forma ampla, tenho certeza de que só perdem.

IHU – Como os próprios indígenas se posicionam acerca da possiblidade de extração mineral em suas terras? Todos são unanimemente contra a atividade?

Suely Araújo – Há conflitos internos entre eles em alguns locais.

IHU – Que tipo de política pública é urgente para as comunidades indígenas que vivem no Brasil hoje?

Suely Araújo – Política indigenista, política de saúde, política educacional com respeito às tradições dessas comunidades, demarcação de todas as áreas com pendências nesse sentido – uma política do respeito em síntese. Isso está longe de acontecer no governo Bolsonaro.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Suely Araújo – Não acredito em qualquer melhoria no quadro no governo atual. Cabe aos brasileiros transformar essa realidade; temos poder para isso.

Suely Araújo é urbanista e advogada, mestre e doutora em Ciência Política pela Universidade de Brasília – UnB. Foi consultora Legislativa da Câmara dos Deputados por 29 anos, nas áreas de meio ambiente e urbanismo. É professora voluntária e pesquisadora colaboradora plena no Instituto de Ciência Política da UnB e também leciona no mestrado em Administração Pública no Instituto Brasiliense de Direito Público. Presidiu o Ibama de 2016 a 2018. No Observatório do Clima, é especialista sênior em políticas públicas desde março de 2020.

Fonte: IHU