Entrevistas

Amazônia já emite mais CO2 do que é capaz de absorver

Amazônia já emite mais CO2 do que é capaz de absorver

Com as queimadas e o desmatamento fora de controle, a Amazônia passou a emitir grande quantidade de carbono, contribuindo com o aquecimento global, é o que alerta a professora e pesquisadora Luciana Gatti, que conduziu estudo sobre as emissões na floresta. O resultado foi assustador: a Amazônia já emite mais gases do que é capaz de absorver. A estimativa é que a floresta emite para a atmosfera 290 milhões de toneladas de carbono por ano além do que retém.

Algumas regiões do bioma amazônico, como sua parte leste, estão drasticamente devastadas. Luciana explica que nesse e em outros locais da Amazônia, o tipping point, ou ponto de inflexão (ponto a partir do qual a degradação ambiental se torna irreversível, bem como as consequências climáticas por ela causadas), já pode ter sido alcançado.

Os efeitos disso não são nada animadores. Quanto mais desmatamento, menos chuvas. Quanto mais seca, menos árvores, gerando um círculo vicioso. A diminuição da floresta e a perda de sua umidade, de acordo com Luciana, pode afetar todo o ciclo de chuvas da América Latina, contribuindo com a mudança do clima não só no continente, mas em todo o mundo.

Luciana Gatti, no entanto, aponta alternativas. Segundo ela, é indispensável a suspensão imediata do desmatamento e das queimadas por cinco anos, para que a floresta possa se regenerar. Além disso, é importante reflorestar áreas mais devastadas. A floresta pode e deve ser uma aliada no equilíbrio climático, e não uma contribuinte do aquecimento global.

Luciana Gatti é graduada em Química e mestra em Química Analítica pela Universidade de São Paulo (US)P. Realizou doutorado em Ciência pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), no Departamento de Química. É especialista em medidas de alta precisão de gases de efeito estufa. É pesquisadora titular do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais/Centro de Ciências do Sistema Terrestre e professora de pós-graduação do curso Tecnologia Nuclear do Ipen, na Universidade de São Paulo. Coordena o Laboratório de Gases de Efeito Estufa – LaGEE, parte integrante do LaPBio/CCST/Inpe.

Confira a entrevista na íntegra, publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos (IHU):

IHU – Quais são as principais conclusões do estudo “Amazônia como fonte de carbono ligada ao desmatamento e mudanças climáticas” ?

Luciana Gatti – As principais conclusões do nosso estudo são, basicamente, duas. A primeira é o balanço total de carbono da Amazônia. Observamos que no saldo entre absorções e emissões a Amazônia emite para a atmosfera 290 milhões de toneladas de carbono por ano. Isso é composto pela diferença da emissão de 410 milhões de toneladas para atmosfera devido, justamente, às queimadas e da absorção pela floresta de 130 milhões de toneladas de carbono por ano. Essa é uma primeira conclusão importante.

A segunda, e ainda mais importante, foi a possibilidade de entendermos o que está acontecendo com a Amazônia. Esse fenômeno ocorre em razão de a região leste [da Amazônia] já estar muito desmatada, e esse desmatamento está alterando as condições climáticas, principalmente a estação seca. Essa condição muito estressante e adversa faz com que essa região tenha uma emissão de carbono muito maior que a oeste.

Observamos que a redução de chuvas é, praticamente, proporcional à área desmatada e que houve um aumento muito grande de temperatura, principalmente nos meses de agosto, setembro e outubro. Esses são os meses em que o pessoal, depois de desmatar, coloca fogo nas áreas, pois esperam mais ou menos três meses para a vegetação ficar bem seca. Em função disso, a floresta que não foi desmatada fica tremendamente seca, pois os volumes de chuva são reduzidos. Por exemplo, a região nordeste da Amazônia, que estudamos, está 37% desmatada e perdeu 34% de chuvas; a região sudeste está 28% desmatada e perdeu 24% de chuvas.

O aumento de temperatura na região nordeste da Amazônia foi de 1,9ºC e na região sudeste foi de 2,5ºC. Essa variação ocorreu em um cenário de 40 anos. Isso tudo é favorecido por esses fatores que mencionei somados à queima de pastagens para gado, cuja produção está enorme na Amazônia, pois, considerando dados até 2019, 36% do gado brasileiro estava no bioma. Como a floresta está extremamente seca, o fogo acaba entrando nas partes em que não foi desmatada, representando, também, emissões.

As emissões não são somente na hora das queimadas, mas também depois, por ocasião da decomposição das regiões queimadas da floresta. Isso acontece seja com folhas, com galhos, seja com árvores inteiras que morreram ao longo dos anos. Uma segunda emissão adicional é o que está acontecendo com a floresta que não foi nem queimada, nem desmatada, mas que tem relação com a condição de estresse associada a pouca disponibilidade de água somada à temperatura alta.

Nós temos de lembrar que a Amazônia é uma floresta tropical úmida, onde as árvores estão habituadas a uma condição de abundância de água e temperaturas amenas, o que não está acontecendo por três, quatro, às vezes, cinco meses ao longo do ano, dependendo da região. Isso tudo faz com que as árvores vão perdendo as folhas, cujo material se junta à decomposição no solo, e leva, até mesmo, à morte das árvores. Alguns estudos apontam que a mortalidade das árvores é muito maior.

IHU – Nessas regiões, pode-se afirmar que chegamos a um ponto de não retorno (tipping point)? Por quê?

Luciana Gatti – Quando começamos a fazer o nosso estudo, em 2010, a Amazônia já era uma fonte de emissão de carbono principalmente por culpa do desmatamento e das queimadas. Não dá para dizer que chegamos a um ponto de não retorno. Se pararmos hoje de queimar e desmatar e passarmos a reflorestar as áreas que estão com desmatamento acima de 30%, seria possível reverter o cenário que estamos observando hoje? Talvez sim. É muito difícil, apenas observando as emissões de carbono, responder isso com certeza. Seria necessário fazer um estudo com pessoas de muitas áreas diferentes para chegar a uma conclusão mais precisa.

IHU – No geral, considerando o bioma da floresta amazônica em sentido mais amplo, qual a relação entre absorção e emissão de gases do efeito estufa? Ela (hoje) emite mais gases ou absorve mais gases?

Luciana Gatti – Essa questão é bastante genérica. Nós não podemos falar disso de maneira tão ampla. Cada ciclo, cada espécie de gás tem particularidades. O estudo que fizemos foi sobre CO2. E é sobre CO2 que a planta faz fotossíntese durante o dia, absorvendo-o e eliminando oxigênio e à noite o oposto. Uma floresta madura mantém um equilíbrio entre o que ela absorve e o que ela emite. Considerando, porém, que o ar está mais enriquecido de CO2, porque usa-se muito petróleo, combustíveis fósseis e se derrubam muitas florestas, estamos enriquecendo a atmosfera de CO2 em mais de 100% e isso estimula as árvores a absorverem mais carbono do que na condição de equilíbrio.

O problema é que a Amazônia está com o clima muito adverso, muito estressante e isso está promovendo um desgaste maior. Está ocorrendo mais mortalidade do que crescimento de floresta no sudeste da Amazônia. No nordeste da Amazônia, que também está muito desmatado, essa condição está fazendo com que a floresta compense apenas 20% do total das emissões de desmatamento e queimadas.

IHU – Qual a importância da floresta amazônica para o clima no Brasil? Como impacta no regime de chuvas e de estiagem de outras regiões?

Luciana Gatti – As árvores evapotranspiram. As raízes pegam a água no solo e jogam na atmosfera em forma de vapor. Um primeiro impacto, grosso modo, é que 20% da Amazônia desmatada são 20% a menos de contribuição na formação de nuvens de chuva com vapor de água, o que causa, como consequência direta, menos precipitação. A segunda consequência é que, quando a água vai do estado líquido para o estado de vapor, ela precisa “roubar” energia e esta energia é apropriada do ambiente em forma de calor, causando um resfriamento. Se menos árvores estão evapotranspirando (afinal as árvores não existem mais), há o aumento de temperatura. Esse é um processo que poderia estar minimizando o aumento das temperaturas devido às mudanças climáticas.

A Amazônia poderia ser uma grande proteção para as mudanças climáticas, pois ela absorve gás carbônico, forma muita chuva com a evapotranspiração e com isso reduz a temperatura, servindo de proteção contra as mudanças climáticas. Contudo, ao desmatar estamos transformando a Amazônia em um fator de contribuição para as mudanças climáticas, pois estamos:

1) jogando mais gás carbônico para a atmosfera;
2) reduzindo as chuvas, o que já é efeito das mudanças climáticas aqui no Brasil;
3) essas transformações estão trazendo o aumento de temperatura. Tudo isso forma um clima extremamente estressante para a Amazônia, que produz um aumento na mortalidade das árvores de forma ampliada e exponencial.

O desmatamento da Amazônia é, em várias ordens de grandeza, prejudicial a toda a América do Sul, ao Brasil, ao agronegócio, que será o primeiro setor a sentir a redução da produtividade devido ao desmatamento. Isso traz consequências para a sociedade de maneira geral, uma vez que essas mudanças climáticas estão causando vários danos ao volume de chuvas e com isso impactos na produção de energia, eventos extremos com muitos prejuízos e mortes.

Isso não será sentido somente no Brasil ou na América do Sul, mas no mundo todo, pois se trata de uma área gigantesca que faz a diferença no planeta. Estamos fazendo com que a Amazônia, que é um benefício gigantesco para o brasileiro, acabe se transformando numa contribuição para a aceleração das mudanças climáticas.

IHU – Que políticas públicas e que ações devem ser tomadas no sentido de preservar o bioma amazônico?

Luciana Gatti – Temos que adotar medidas urgentes para salvar a Amazônia. Em primeiro lugar devemos fazer um grande acordo nacional, uma moratória de dez anos sobre a Amazônia e a proibição de quaisquer tipos de queimadas entre julho e novembro, período de estiagem e maior seca, com incêndios incontroláveis. Esse problema pode ser observado não somente na região Norte do Brasil, mas no país inteiro. Não à toa toda hora vemos incêndios que foram provocados numa área pequena em que a vegetação está tão seca que o fogo acaba saindo de controle, produzindo ainda mais emissão de gases do efeito estufa e contribuindo para as mudanças climáticas.

Isso é uma espécie de “bola de neve” que vai se retroalimentando e piorando cada vez mais. Precisamos de medidas urgentes para minimizar as alterações na vida em sociedade que a mudança climática está trazendo e administrar um futuro que, podemos prever, será uma catástrofe. Até agora nós estamos contribuindo com a catástrofe, fazendo o oposto do que deveríamos estar fazendo ao incentivar o desmatamento e uma série de destruições das leis de proteção ambiental, ou seja, estamos trabalhando contra nós mesmos. Estamos “plantando seca”. Ah, e devo acrescentar, estamos plantando incêndio e um futuro muito tenebroso para o Brasil.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos (IHU).