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Entrevistas

Amazônia sob pressão: panorama das ameaças à maior floresta tropical do mundo

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Amazônia sob pressão: panorama das ameaças à maior floresta tropical do mundo

Mais de 30% da Amazônia sofre com alta ou altíssima pressão decorrente da exploração de recursos e do avanço de atividades ilegais. Obras de infraestrutura, mineração e agropecuária estão entre as atividades que mais impactam o bioma amazônico, indicou o “Atlas Amazônia Sob Pressão 2020”, um panorama sobre as principais ameaças, pressões e importância da maior floresta tropical do mundo para América do Sul e o planeta.

Publicado pela primeira vez em 2012, o levantamento é fruto do trabalho de dez grupos técnicos da Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (Raisg). Em entrevista ao IHU On-Line, a geógrafa e pesquisadora Júlia Jacomini revelou os bastidores da degradação na Amazônia e os atores que estão promovendo a destruição da floresta.

“Percebemos que nas últimas décadas há um ritmo muito acelerado de crescimento das pressões e ameaças, bem como dos sintomas e consequências das atividades humanas na Amazônia. Se na primeira análise em 2012 já mostrava um quadro complicado, agora essas questões todas se agravam. Infelizmente não existe uma ameaça que deixou de existir. O que podemos observar, ao contrário, é que as ameaças estão em ritmo crescente”, destacou.

Júlia Jacomini é pesquisadora do Instituto Socioambiental (ISA) e RAISG. Geógrafa pela Unesp-Rio Claro, é especialista em Geoprocessamento Aplicado pela UFSCar e mestre em Integração da América Latina pelo Prolam/USP.

Confira a entrevista na íntegra:

IHU – Quais são os indicadores estudados e apresentados no Atlas – Amazônia sob pressão?

Júlia Jacomini – A Rede Amazônica de Informação Socioambiental – Raisg é uma rede de organizações da sociedade civil de seis países amazônicos. Uma das grandes contribuições da publicação do Atlas – Amazônia sob pressão 2020 é apresentar uma análise regional que vai além das fronteiras político-administrativas dos países. Na maioria das vezes acabamos vendo estudos em escala nacional, e esse tipo de estudo da Raisg permite uma perspectiva integral da Amazônia.

A Raisg surgiu em 2007 sempre disposta a fazer essa análise regional e em 2012 publicou o primeiro Atlas de pressões na Amazônia. Nos anos seguintes foram publicados alguns mapas, mas análises mais aprofundadas só foram publicadas em 2020, na atual versão do documento. Nesse contexto era importante fazer um comparativo, mas de lá para cá alguns temas novos foram incorporados às análises e, também, novas metodologias foram desenvolvidas, razão pela qual as comparações precisam de alguns cuidados.

Como pressões e ameaças consideramos obras de infraestrutura, como estradas e hidrelétricas, atividades extrativas como petróleo e mineração (incluindo o garimpo) e, por fim, a atividade agropecuária, incorporada ao Atlas de 2020.

Além das pressões e ameaças, temos dados que chamamos de “sintomas e consequências”, a saber: o desmatamento, as queimadas e a variação da densidade de carbono, este último incorporado recentemente nas análises da Raisg.

Percebemos que nas últimas décadas há um ritmo muito acelerado de crescimento das pressões e ameaças, bem como dos sintomas e consequências das atividades humanas na Amazônia. Se na primeira análise em 2012 já mostrava um quadro complicado, agora essas questões todas se agravam.

IHU – Quais as principais fragilidades da região amazônica atualmente?

J. J – Gostaria de começar pelos dados de desmatamento porque é um dado produzido pela Raisg. Cada país produz seu dado oficial, mas se formos juntar todos eles, dos diferentes países, a perioicidade e as metodologias não batem. A Raisg desenvolveu uma metodologia própria, a partir da análise do uso do solo, então os dados podem não bater com o divulgado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – Inpe, por exemplo.

O ano-base é 2000 e realizamos o levantamento até 2018. Dentro desse período, a maior taxa de toda a série histórica é no ano de 2003. A partir deste ano temos uma queda no desmatamento, cuja menor taxa será em 2010. A partir de 2012 o desmatamento volta a crescer, mas se acelera intensamente entre 2015 e 2018, quando ele triplica.

Os resultados finais mostram que, entre 2000 e 2018, foram desmatados mais de 500 mil quilômetros de floresta na Amazônia, um território correspondente à Espanha. Entre as principais pressões que levam a este desmatamento temos a atividade agropecuária, responsável por 84% do total.

Diante deste cenário, bastante desolador, temos algo importante a destacar que são os territórios indígenas e as áreas naturais de proteção. Quase 90% do desmatamento, nestes 18 anos, ocorreu fora dos territórios indígenas e das áreas naturais protegidas. Isso mostra que estes territórios são barreiras importantes e mostra a importância das atividades realizadas pelos povos indígenas e pelas comunidades tradicionais em manter a floresta em pé.

Por outro lado, embora sejam barreiras importantes, esses territórios estão sendo cada vez mais ameaçados. Essa tendência do desmatamento na Amazônia é puxada, em grande parte, pelo Brasil. Isso porque o país tem mais de 60% do território amazônico, mas também por conta do desmatamento acelerado no Brasil, o que eleva a média de toda a região.

IHU – Quais são os vestígios que indicam que o bioma amazônico está em risco e se deteriorando?

J. J – Além do desmatamento, há outros indicadores. No caso das queimadas, fizemos uma análise entre 2001 e 2019, mostrando que 13% da Amazônia foi afetada pelo fogo. Isso equivale a uma área do tamanho do território da Bolívia, mais de 1 milhão de quilômetros quadrados. Embora saibamos que apenas um incêndio não causará desmatamento, observamos que há várias repetições de queimadas, ano a ano, e essas queimadas consecutivas podem levar a uma grande deterioração dos ecossistemas e provocar o desmatamento.

O país da região amazônica mais atingido por queimadas é a própria Bolívia, com 27% do território amazônico atingido pelo fogo. Depois temos o Brasil. Isso nos ajuda a entender que, dependendo do tema, algumas ameaças são mais graves em alguns países que em outros.

IHU– E a exploração de petróleo na Amazônia, como está atualmente?

J. J – No Brasil, a exploração de petróleo é pequena, mas no Equador essa situação é bastante grave. Do ponto de vista geral, os lotes petrolíferos ocupam 9,4% da superfície da Amazônia e a maior parte está na chamada “Amazônia Andina”, nos territórios da Bolívia, Colômbia, Equador e Peru. O Equador é o país com maior porcentagem ocupada por esse tipo de atividade, com 51,5% do território amazônico.

No caso do petróleo há impactos significativos em casos de derramamento e, pela característica da atividade, há a necessidade de construção de infraestrutura. É sempre importante pensar essas pressões e ameaças de uma maneira complementar, pois todas essas explorações – incluindo mineração e hidrelétricas – vêm associadas à construção de estradas, que são grandes vetores de desmatamento.

Uma região que é atingida pelo impacto do petróleo ou da mineração também vai contar com impacto de estradas, ferrovias, linhas de transmissão de energia e, não raro, com a construção de hidrelétricas.

Todas essas ameaças vão se sobrepondo, levando ao número de que 30% da Amazônia está sob pressão alta ou muito alta. Isso significa que, além da avaliação de cada tema separadamente, buscamos fazer uma análise integrada destes dados. Uma mesma região pode ser atingida por mais de uma pressão e ameaça.

Então, nesse sentido, uma estrada concluída causa mais impacto que uma estrada planejada, de tal modo que as análises consideram os pesos para cada tema, de acordo com os estágios das obras e atividades, bem como as sobreposições de tais atividades.

Retomando a questão do Equador, esse é o caso mais dramático dessas pressões e ameaças relacionadas ao petróleo. As análises feitas pela Raisg apontam que 88% do território amazônico do Equador está afetado por algum tipo de pressão, desde as mais baixas até aquelas mais altas, isto é, com ações já em andamento.

IHU On-Line – Qual a importância de pensar nestes temas de maneira articulada?

J. J – A Amazônia é muito grande e as realidades nacionais são muito distintas, então é fundamental pensar de forma articulada. Mesmo quando consideramos estes dados dentro de um país, percebemos que há regiões mais afetadas por uma ou outra atividade. Quando, porém, analisamos os dados de forma integrada temos uma imagem mais complexa e realista da situação, o que nos ajuda a compreender o processo de deterioração acelerado.

Mas neste momento temos destacado as questões da mineração, do desmatamento e das queimadas como as grandes ameaças, que avançam cada vez mais sobre os territórios indígenas e as áreas naturais de proteção ambiental, que, embora sejam barreiras de contenção importantes, estão cada vez mais fragilizadas.

No caso do Brasil, o garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami, além da grande ameaça relacionada ao impacto ambiental, trouxe um fator adicional de risco, pois os garimpeiros estão contaminando as populações locais com a covid-19. Tivemos altos índices de contaminação por conta desses invasores garimpeiros, que são transmissores do vírus.

IHU– A propósito, como a pandemia global da covid-19 impactou, particularmente, a região amazônica?

J. J – Temos trabalhado na consolidação desses dados em escala regional. A dificuldade que temos enfrentado é como esses dados estão sendo disponibilizados pelos países, inclusive no que toca à diferenciação das populações amazônicas. Também porque os dados dos países, às vezes, não contemplam informações específicas das populações indígenas.

Os efeitos da pandemia têm sido muito graves na Amazônia, sobretudo pela dificuldade do isolamento quando estes territórios estão fragilizados e sendo invadidos, como no caso Yanomami.

No Brasil há casos em que os próprios agentes de saúde são vetores do vírus para dentro das aldeias, também por conta da sistemática fragilização dos órgãos ambientais e governamentais destinados à proteção dos povos indígenas, com cada vez menos equipes, menos recursos, inviabilizando o trabalho de apoio às populações tradicionais. A Venezuela tem feito, também, um levantamento da covid-19 em seus territórios, mas ainda não temos nada consolidado em escala regional.

IHU – Olhando em perspectiva, em relação ao primeiro Atlas produzido em 2012, o que mudou de lá para cá?

J. J – Em primeiro lugar a metodologia, que acaba impactando as análises. Isso porque na atual edição aumentou nossa área de análise. Se antes considerávamos somente a área da bacia amazônica e as amazônias político-administrativas, agora contemplamos também as cabeceiras dos rios amazônicos. Isso fez com que analisássemos também a região Andina, bem como ampliássemos para a região do Chaco na Bolívia e parte do Cerrado no Brasil.

Infelizmente não existe uma ameaça que deixou de existir. O que podemos observar, ao contrário, é que as ameaças estão em ritmo crescente.

No que toca às comparações é importante ressaltar que desde a última edição, publicada em 2012, as análises da Raisg melhoraram em matéria de metodologia, acesso à informação e precisão cartográfica. Como resultado, é possível encontrar algumas disparidades em relação aos dados de 2020. Dessa maneira, as análises temporais comparativas são apenas referenciais.

IHU – Em um cenário de aquecimento global, quais poderão ser as consequências para a vida no planeta se o processo de deterioração da Amazônia não for imediatamente freado?

J. J – As consequências já estão acontecendo. Por exemplo, o caso das queimadas. A Amazônia tem algumas queimas que são consideradas naturais no período de seca, em que parte da vegetação queima e nutre o solo da floresta e a fortalece. Temos observado que os períodos de seca têm ficado cada vez maiores.

Então as mudanças climáticas não são algo do futuro, mas do presente. Com a ampliação do período de seca temos uma ampliação do período de queimadas, cada vez mais severas e de difícil controle, como temos visto nos últimos dois anos, no Brasil e na Bolívia. Embora seja outro bioma, temos o exemplo do que ocorreu no Pantanal, pois com a seca esses biomas ficam cada vez mais vulneráveis.

A longo prazo temos uma intensificação de todos esses processos e são enormes os impactos que essa perda de biodiversidade traz às populações indígenas e às comunidades tradicionais, que vivem de uma maneira muito integrada à natureza, fazendo o manejo adequado de seus territórios. Sem contar que a devastação ambiental impacta os seus modos de organização cultural e modos de vida.

IHU – Deseja acrescentar algo?

J. J – É fundamental sublinhar a importância de fortalecer essa visão da Amazônia de modo integral. Por isso é importante que haja uma articulação entre os países amazônicos para combater o avanço acelerado desses fatores. É necessário pensar na Amazônia como um todo, não apenas na escala de cada país.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos