Entrevistas

Engenheiro constrói sua própria residência autossustentável

Engenheiro constrói sua própria residência autossustentável
Euler Cruz mostra sua residência autossustentável

“Uma residência autossustentável é aquela que, em sua construção e utilização, exige a menor quantidade possível de recursos naturais e de energia. Desta forma, é construída com materiais que demandam menor exploração da natureza e, sempre que possível, utiliza materiais de outras construções demolidas”. O conceito é de Euler Cruz, engenheiro mecânico com especialização em energias renováveis na Itália, com ênfase em fotovoltaica e eólica, que participou da Terça Ambiental deste mês. A casa de Euler foi construída com materiais de demolição, gera energia limpa e armazena água da chuva, além de ter sido a primeira residência de Belo Horizonte a instalar painéis fotovoltaicos para captação de energia solar.

Para Euler, uma residência assim tem a vantagem de reduzir ao máximo a destruição do meio ambiente e, “mais que isto, tem a vantagem de reconduzir as pessoas rumo aos verdadeiros valores humanos, permitindo-as aproximar-se das coisas realmente boas da vida”.

O engenheiro critica o estilo de vida atual, com uma sociedade viciada em modernidades que prometem uma vida melhor, mas na verdade tiram a possibilidade de continuação da vida no planeta. “Tudo isto já está dito e redito por muitos outros, mas continuamos agindo como se nosso Titanic ainda não tivesse se chocado com um iceberg. Preferimos crer que nosso barco, como o Titanic, foi projetado para não afundar”, disse. Para ele, o comportamento suicida e ilógico precisa ser rapidamente alterado.

Confira a entrevista completa:

Amda – O que é uma residência autossustentável? Quais as vantagens de se morar em uma casa desse padrão?

Euler Cruz – O conceito de sustentabilidade é muito amplo. Para mim uma residência autossustentável é aquela que, em sua construção e utilização, exige a menor quantidade possível de recursos naturais e de energia. Desta forma, é construída com materiais que demandam menor exploração da natureza (minas, madeira, água etc.) e, sempre que possível, utiliza materiais de outras construções demolidas (gostaria de ao invés de demolição passássemos a usar a palavra “desmontagem”). As casas e edifícios que necessitam ser “desmontados” funcionam como “minas” de materiais, grande parte deles de ótima qualidade. Estes materiais representam recursos já retirados da natureza, incorporam a energia que foi necessária para sua elaboração, a mão de obra, o transporte e vários outros recursos e, uma vez reutilizados, impedem novas agressões ao meio ambiente, necessárias para retirada de recursos naturais, para seu processamento, transporte e montagem. Uma residência autossustentável também reduz o consumo em todos os aspectos, produz parte (ou toda) a energia de que precisa, aquece a água do banho com coletores solares, faz captação de água de chuva (que em alguns casos pode torná-la independente de suprimento externo), trata e recicla a água cinza que produz, separa os materiais descartados e os envia a reciclagem, produz alguns alimentos, reduz ao mínimo o uso de produtos industrializados, reaproveita móveis, utensílios, vestuário etc. Esta residência, naturalmente, se opõe ao moderno padrão consumista e envolve seus moradores em um ambiente de responsabilidade para com a vida como um todo, conduzindo-os a vivências mais ligadas à simplicidade, à cooperação, à humildade, à amizade e, para quem crê, à espiritualidade. Uma residência assim tem a vantagem de reduzir ao máximo a destruição do meio ambiente a qual é incentivada pelo moderno padrão da sociedade em que vivemos. Mais que isto, tem a vantagem de reconduzir as pessoas rumo aos verdadeiros valores humanos, permitindo-as aproximar-se das coisas realmente boas da vida.

Amda – No dia 13 de agosto, a exploração humana ultrapassou a biocapacidade da Terra: esgotamos todos os recursos que o planeta é capaz de oferecer de forma sustentável no período de um ano. Se continuarmos no ritmo atual, estimativas indicam que vamos consumir o equivalente a dois planetas até 2030. Qual deve ser a postura da sociedade diante desse cenário alarmante?

E.C. – Precisamos tomar consciência da enormidade da nossa burrice ao aceitarmos como normal e desejável um tipo de sociedade e de vida destrutivos. Nosso comportamento suicida e ilógico precisa ser rapidamente alterado. Isto é extremamente difícil. Mudar conceitos, hábitos e práticas comuns é o que há de mais complicado, principalmente quando estes hábitos nos permitem certo conforto. Quem quer deixar o que é confortável e prazeroso? Que viciado consegue facilmente se livrar do fumo, das drogas, da bebida? Estamos viciados em modernidades que, ao nos prometerem uma vida melhor, na verdade estão nos tirando a vida e, mais que isto, a possibilidade de continuação da vida no planeta. Esta é nossa droga maior. A vida não é o que vemos em um Shopping, onde tudo, até o clima e a iluminação, são artificiais. A vida mesmo se passa nos andares de baixo deste imenso edifício socioeconômico que construímos: precisamos deixar esta cobertura e voltar no tempo e nos costumes para o térreo, precisamos colocar os pés no chão e abandonar a ilusão da felicidade pela propriedade de bens (ou males?) ditos modernos. Precisamos reaprender a usar menos coisas, a tirar prazer de coisas do nosso interior e não do exterior. Em outras palavras, temos que priorizar o nosso “software” e parar de pensar que importa mesmo é o “hardware”. E isto demanda muito esforço da nossa parte, muito treinamento. É como se tivéssemos que entrar em uma academia e mudar a dieta para emagrecer. Penso nas pessoas que hoje estão saindo da Síria e da África rumo à Europa: elas deixam seus países, abandonam tudo e têm que se adaptar à nova realidade dos países para onde vão, têm que recomeçar a vida, esperando que ela seja melhor. De certa forma, teremos, também nós, de deixar o mundo de consumismo e entrar em um novo mundo, que seja sustentável. Precisaremos abandonar muitas práticas e objetos nocivos à vida e ao planeta e voltar a práticas mais simples, reaprendendo muitas das coisas que as pessoas faziam, no passado, para viver. Podemos pensar que estaremos voltando ao pior, mas, na verdade, estaremos voltando à vida, estaremos fugindo da morte a que o mundo atual, de forma lenta, disfarçada e segura, está nos levando, como se leva um bando de ovelhas para o matadouro. Fácil não é, mas é extremamente necessário. É vital. Tudo isto já está dito e redito por muitos outros, mas continuamos agindo como se nosso Titanic ainda não tivesse se chocado com um iceberg. Preferimos crer que nosso barco, como o Titanic, foi projetado para não afundar.

Amda – A geração de energia limpa em residências tem ganhado cada vez mais espaço no mercado e vem conquistando consumidores. O que diz a legislação brasileira?

E.C. – A resolução 482 da ANEEL permite a geração de até 100 kW em instalações privadas (residências e indústrias). Esta geração, desde que atenda a alguns padrões para interligação à rede nacional de energia (frequência, tensão, reativo, harmônicos), tem que ser aceita pelas concessionárias, que devem reduzir a fatura das unidades geradoras de acordo com a quantidade produzida. Se a geração se dá durante um período do dia (por exemplo, a fotovoltaica, que depende do sol), as concessionárias têm que suprir a demanda nas horas de menor geração ou de geração nula. Na unidade consumidora é instalado um medidor bidirecional, um “relógio” de luz especial, que mede quanto de energia a unidade consome da rede e quanto ela injeta na rede. A diferença é faturada pela concessionária quando o consumo é maior do que a geração. Se ocorre o contrário, a energia a mais fica em uma conta, como que depositada no sistema elétrico, e a unidade consumidora tem até três anos, a partir de cada mês de energia gerada a mais, para consumir este excesso. A energia gerada em uma unidade pode ser consumida em qualquer outro local da rede da concessionária, desde que o titular do imóvel deste local seja o mesmo do imóvel onde a energia foi gerada. Não é uma legislação ideal, mas já é um grande avanço, pois antes não tínhamos nada a este respeito. Em outros países, há incentivos para geração em instalações privadas.

Amda – Quais providências devem ser tomadas pelo cidadão que tem interesse em adquirir, por exemplo, painéis fotovoltaicos? Quais os benefícios da geração de energia em residências, tanto para o cidadão quanto para o planeta?

E.C. – O cidadão deve procurar firmas especializadas e solicitar propostas. Não apenas o preço deve ser comparado, mas também as garantias. As empresas fazem a estimativa da potência a ser instalada com base nas contas de luz (ou seja, no consumo médio anual) e na posição em que serão instalados os painéis. É importante que o local de instalação seja sombreado o menos possível por outras construções ou objetos, que os painéis sejam voltados para o norte (no nosso hemisfério) e que estejam com a inclinação correta. Uma geração doméstica reduz a necessidade de construção de novas usinas e de ampliação da rede de distribuição. A maior vantagem, no entanto, é financeira. Com os preços atuais dos painéis e da energia que pagamos, um sistema fotovoltaico que produza toda a energia que consumimos em casa pode se pagar em seis anos e continuar a produzir energia de graça por mais 20 anos. Outro ponto que penso importante: devemos adquirir os equipamentos de empresas brasileiras que os produzem, mesmo que isto implique em um preço um pouco maior. Acho importantíssima a manutenção dos empregos e da renda em nosso país.

Amda – Em tempos de crise hídrica, qualquer medida adotada para reduzir o consumo de água é importante. Uma das alternativas é a captação de água da chuva. Como funciona esse sistema e quais são suas vantagens?

E.C. – O sistema é muito simples. Basta instalar calhas nos beirais do telhado e conduzir a água captada para um reservatório grande, ao abrigo da luz solar – para evitar o crescimento de algas – e fechado, para evitar a entrada de insetos. Quanto maior o reservatório, melhor. De acordo com a minha experiência, pode-se comprar caixas d’água de fibra ou polietileno ou, melhor ainda, fazer um reservatório de concreto escavando-se metade de sua profundidade no solo. A outra metade, que fica acima da terra, é feita prolongando-se as paredes internas do reservatório para cima e calçando-se estas paredes com a mesma terra retirada da escavação. Assim, não é preciso transportar a terra para fora da obra e toda a construção fica mais barata. A impermeabilização é fácil. Uma laje de cobertura permite o aproveitamento da área sobre ela para qualquer outro fim. Minha experiência tem mostrado que a água fica muito pura, tem pH alcalino (o que é ótimo para a saúde e elimina todas as bactérias) e não precisa tratamento algum. No entanto, dependendo do local e do uso, pode-se instalar pequenas unidades de tratamento desta água. O que nos impede de fazer isto é apenas a falta de costume e o hábito de comprar água da rede pública. Há muitos mitos sobre água de chuva, muitas vezes disseminados por quem quer ganhar dinheiro vendendo água. As casas da antiga Roma, por exemplo, se supriam de água de chuva. Não há mistério nisto, mas não há espaço aqui para alguns detalhes importantes para quem quiser seguir este caminho. A captação da água de chuva reduz as enchentes nas cidades, evita que roubemos água de rios e mananciais distantes, que gastemos recursos públicos para construção de adutoras de muitos quilômetros e de redes de distribuição, evita a construção de grandes e caras estações de tratamento, evita a perda de 40% da água captada em vazamentos pelas redes subterrâneas nas ruas e avenidas e evita que consumamos água cheia de produtos químicos usados para tornar potável a água de rios que recebem o esgoto que produzimos. A água de chuva é água destilada.

Amda – Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), um terço dos alimentos consumidos no dia a dia pelos brasileiros está contaminado por agrotóxicos. Uma residência autossustentável engloba também a questão da alimentação?

E.C. – Sim, mesmo em apartamentos podemos produzir alguma verdura, alguma fruta e algum legume. O ideal é ter uma área um pouco maior, irrigar a horta com água de chuva e fazer uma agricultura orgânica. Antigamente toda casa tinha sua horta. Tinha também o galinheiro, onde os restos de alimentos eram transformados em proteína (ovos e carne). Perdemos este costume e construímos cidades onde estas práticas, se não impossíveis, são muito mais difíceis. Uma horta doméstica reduz a quantidade de área de mata cortada para permitir a produção de alimentos, reduz o gasto de energia com o transporte e a comercialização, reduz o gasto de água com irrigação. A horta, além de produzir alimento saudável, nos proporciona uma atividade relaxante, deliciosa. Infelizmente não temos tempo para isto, pois precisamos ler e postar fotos e mensagens nos celulares, coisas muito mais úteis e importantes que cultivar alimentos, cultivar a arte, a leitura e uma boa conversa com os amigos.