Array
Entrevistas

Bem-estar humano é um reflexo do estado do ambiente natural

Array
Bem-estar humano é um reflexo do estado do ambiente natural
Luiz Paulo Pinto participa da Terça Ambiental / Crédito: Marina Bhering / Amda

Luiz Paulo Pinto, biólogo e mestre em ecologia, conservação e manejo da vida silvestre pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) foi o convidado da Terça Ambiental deste mês para falar sobre o Cerrado, o segundo maior bioma brasileiro. Por 20 anos, Luiz atuou na Conservação Internacional (CI-Brasil), participando de projetos como identificação de áreas e ações prioritárias para conservação da biodiversidade no bioma; fortalecimento do Parque Nacional das Emas, no sudoeste de Goiás, que posteriormente faria parte do Corredor de Biodiversidade Emas-Taquari; e do projeto Produzir e Conservar no oeste da Bahia, na tentativa de integrar conservação da biodiversidade e agronegócio em um dos maiores centros de produção agrícola do país. Além disso, o biólogo participou de projetos de avaliação de impacto ambiental dos empreendimentos: Usina Hidrelétrica de Bocaina, no triângulo mineiro; área de mineração de argila refratária, incluindo ambientes de veredas, no norte de Minas Gerais; e Projeto de Colonização Rural de Angical em Barreiras, oeste da Bahia.

Em virtude de sua elevada riqueza biológica, endemismos (espécies com distribuição restrita ao bioma) e níveis de ameaça, o Cerrado foi indicado como um dos hotspots mundiais, ou seja, uma das prioridades para a conservação de biodiversidade em todo o mundo. Dados da Embrapa Cerrados mostram a importância do bioma para a composição de oito das 12 bacias hidrográficas brasileiras e para a segurança hídrica no país, principalmente com a atual crise. “Toda a água da bacia do Paraguai, por exemplo, é proveniente do Cerrado, ou seja, sem o Cerrado não existiria o Pantanal. Dado o inegável papel dos ecossistemas naturais do Cerrado na conservação dos recursos hídricos que, em diferentes graus, influencia a quantidade, qualidade e constância do suprimento de água doce, abre-se a perspectiva de somar forças e propósitos aos de conservação da biodiversidade no bioma”, comentou Luiz.

Para o biólogo, o nosso bem-estar é um reflexo do estado do ambiente natural. “O capital natural (biodiversidade, serviços ecossistêmicos e recursos naturais) é a base para o desenvolvimento sustentável e para o bem-estar humano, ou seja, é preciso reconhecer que o ser humano precisa da natureza para prosperar. É a natureza que proporciona os ganhos no capital humano (população sadia, seu conjunto de habilidades e conhecimentos etc.) e no capital físico (ferramentas, máquinas, edifícios etc.), por meio da transformação de recursos naturais via uso de tecnologias”.

Confira a entrevista completa:

Amda – O Cerrado é considerado a savana mais rica em biodiversidade do mundo. Qual a importância do bioma para o Brasil? E no cenário mundial?

Luiz Paulo – Em virtude de sua elevada riqueza biológica e endemismos (espécies com distribuição restrita ao bioma), e níveis de ameaça, o Cerrado foi indicado, ao lado de outras 33 regiões localizadas em diferentes partes do planeta, como um dos hotspots mundiais, ou seja, uma das prioridades para a conservação de biodiversidade em todo o mundo. Esse é um importante reconhecimento da comunidade científica internacional. Além de possuir uma extraordinária biodiversidade com mais de 12 mil espécies vegetais, sendo que ao menos 35% dessas espécies não ocorre em nenhuma outra região do planeta, o bioma possui hoje cerca de 60% da produção de grãos no país, além de abrigar total ou parcialmente oito das doze bacias hidrográficas do Brasil. São elas: a região hidrográfica do Amazonas (rios Xingu, Madeira e Trombetas), do Tocantins/Araguaia, do Parnaíba, do Atlântico Norte Oriental (rio Itapecuru), do São Francisco (rios São Francisco, Pará, Paraopeba, das Velhas, Jequitaí, Paracatu, Urucuia, Carinhanha, Corrente e Grande), do Atlântico Leste (rios Pardo e Jequitinhonha), do Paraná (rios Paranaíba, Grande, Sucuriú, Verde e Pardo) e do Alto Paraguai (rios Cuiabá, São Lourenço, Taquari e Aquidauana). Não há dúvidas sobre a importância do Cerrado para a economia do país, e para a proteção de parcela da riquíssima biodiversidade brasileira e do bem estar de sua população.

Amda – Qual o tamanho do bioma? Qual área ele abrange em território brasileiro? Ele pode ser encontrado em algum outro lugar do mundo?

LP – O Cerrado ocupa 24% do território brasileiro – 2.036.448 km² – abrangendo o Distrito Federal, 10 estados (GO; MT; MS; TO; MA; PI; BA; MG; SP; PR) e 1.500 municípios. Este território possui uma população estimada de cerca de 20 milhões de pessoas. Enclaves de Cerrado podem ser observados também no Amapá, Roraima, Amazonas e Pará. Paraguai e Bolívia também possuem pequenas porções de Cerrado em seus territórios. É o segundo maior bioma brasileiro e tem uma posição estratégica no território brasileiro. Abrange o Planalto Central do Brasil, separando os dois complexos florestais brasileiros – a Amazônia e a Mata Atlântica. Associado ao Cerrado está a maior planície alagável do mundo: o Pantanal. Os limites entre Cerrado e Pantanal são determinados basicamente pelo relevo, com o Pantanal nas áreas baixas da bacia do rio Paraguai e o Cerrado na sua parte alta, sobre os grandes planaltos do Brasil Central, como divisor de águas das grandes bacias hidrográficas brasileiras. Os principais rios do Pantanal nascem nos planaltos e nas chapadas do Cerrado, evidenciando a ligação entre os dois biomas.

Amda – Quais suas principais características?

LP – O bioma Cerrado é caracterizado por grande complexidade e heterogeneidade da vegetação, sendo necessário o emprego de mais de um fator ambiental para explicar a ocorrência, distribuição e dinâmica dos diferentes tipos de vegetação que o caracterizam. A origem das formações savânicas e campestres do Cerrado têm sido muito discutidas e é objeto de algumas teorias na literatura científica desde a década de 60. Mais recentemente, o conceito de Cerrado tem sido interpretado conforme o conceito de “savana”, segundo o qual envolve quatro fatores primordiais: disponibilidade de água; aspectos edáficos e geológicos (ex.: deficiência de minerais, saturação por elementos como o alumínio no Cerrado, profundidade do solo etc.); ocorrência de fogo; e herbivoria pela fauna. Os três primeiros fatores são determinantes para a evolução do Cerrado, além de fatores históricos de contração e expansão do bioma. Alguns autores apontam que cada tipo fisionômico de vegetação se desenvolve em função da interação de fatores edáficos (profundidade do solo e disponibilidade de água) resultando em diferentes estágios finais de sucessão da vegetação. Sendo assim, a ocorrência do gradiente de vegetação do cerrado sensu lato é resultante de um ou mais desses fatores atuando sobre o ambiente. A ocorrência do fogo e perturbações humanas seriam outro fator que pode afetar fortemente esse gradiente de vegetação, mas pode contribuir também para a coexistência das diferentes formações vegetacionais do bioma.

Amda – Como é sua vegetação?

LP – A vegetação do Cerrado é formada por um mosaico heterogêneo de fisionomias vegetais formando um gradiente de altura-densidade entre formações campestres e formações florestais. As formações da vegetação do Cerrado podem se diferenciar pela fisionomia, definida pela estrutura, pelas formas de crescimento dominantes (gramínea; arbustos, árvores) e por possíveis mudanças estacionais; e quanto aos aspectos do ambiente (fatores edáficos) e da composição florística. São descritos 11 tipos fitofisionômicos para o Cerrado separados em três grupos e suas subdivisões: (a) Formações Florestais (predominam espécies arbóreas e formação de dossel) – Mata Ciliar; Mata de Galeria; Mata Seca e Cerradão; (b) Formações Savânicas (caracteriza-se pela presença de extratos arbóreo e arbustivo-herbáceo bem definidos, com as árvores distribuídas aleatoriamente e espaçadas em diferentes densidades) – Cerrado sensu stricto; Parque de Cerrado; Palmeiral e Vereda; (c) Formações Campestres (caracteriza-se pela ocorrência marcante de espécies de arbustos e subarbustos por entre o estrato herbáceo dominado por gramíneas) – Campo Sujo; Campo Rupestre; Campo Limpo. Estudos mostram que o conjunto dessas formações vegetacionais possuem diferenças ao longo do Cerrado, caracterizando pelo menos seis ou sete grupos fitogeográficos para o bioma. Esse é um aspecto importante e deve ser considerado ao se estabelecer uma estratégia de conservação do bioma.

Amda – O que difere o Cerrado de outros biomas?

LP – Enquanto a estratificação vertical da floresta na Amazônia e na Mata Atlântica proporciona ambiente para alta diversidade biológica de espécies, no Cerrado a heterogeneidade espacial (a variação dos ecossistemas ao longo do espaço) seria um fator determinante para a ocorrência de grande riqueza da fauna e flora. Os ambientes do Cerrado variam significativamente no sentido horizontal, onde áreas campestres, florestas e áreas brejosas podem existir em uma mesma região. Existe no Cerrado uma enorme variedade de tipos de solo, topografia e uma dinâmica histórica de contração e expansão da distribuição de espécies e ecossistemas devido às mudanças no clima. A distribuição central do Cerrado no país permite o maior contato e compartilhamento, da fauna e flora, com os biomas vizinhos – Amazônia, Mata Atlântica, Caatinga e Pantanal, especialmente através das matas ciliares e de florestas de galeria que margeiam os rios e cursos d’água que atravessam mais de um bioma. Isso confere uma grande diversidade biológica para o bioma. Mesmo assim, o Cerrado apresenta também elevado nível de endemismos (restrição de ocorrência de espécie ao bioma) para alguns grupos biológicos como plantas (35%), lagartos (26%), anfíbios (28%) e anfisbênias, as chamadas cobras cegas ou de duas cabeças (50%).

Amda – O bioma possui grandes reservas subterrâneas de água doce que abastecem as principais bacias hidrográficas do país. Qual a importância do Cerrado diante da atual crise hídrica do país?

LP – Dados da Embrapa Cerrados mostram a importância do bioma para a composição de oito das 12 bacias hidrográficas brasileiras e para a segurança hídrica no país. Toda a água da bacia do Paraguai, por exemplo, é proveniente do Cerrado, ou seja, sem o Cerrado não existiria o Pantanal. O mesmo vale para a bacia do rio Parnaíba. Toda água dessa bacia vem do Cerrado. Já a bacia do Tocantins-Araguaia tem 70% da sua água provenientes do Cerrado. Metade da bacia do rio São Francisco está inserida no Cerrado e 93% do volume da água são provenientes do bioma. Para os pesquisadores da Embrapa Cerrados o potencial hídrico do bioma está relacionado a sua distribuição no Planalto Central do Brasil e solos apresentando alta capacidade de armazenamento de água. Em um cenário de escassez de água e degradação dos solos, o controle dos recursos naturais vai se tornar mais complexo neste século, porque o uso se tornará mais competitivo. O crescimento econômico do país e a consequente demanda por expansão da infraestrutura, expansão agrícola e maior urbanização, associados às consequências das mudanças climáticas, geram uma forte pressão sobre o uso da água. O setor agrícola que se expande no Cerrado, por exemplo, é o maior usuário da água doce no país. Somente a irrigação para as culturas agrícolas é responsável pelo uso de 72% da água consumida no Brasil. O uso descontrolado de fertilizantes e a extração excessiva de água é fonte de impactos ambientais e de conflitos sociais e econômicos. Dado o inegável papel dos ecossistemas naturais do Cerrado na conservação dos recursos hídricos que, em diferentes graus, influencia a quantidade, qualidade e constância do suprimento de água doce, abre-se a perspectiva de somar forças e propósitos aos de conservação da biodiversidade no bioma.

Amda – O desmatamento é um dos fatores que mais prejudicam o meio ambiente de forma geral. O Cerrado é também vítima dessa ação?

LP – O Cerrado é um dos biomas brasileiros mais ameaçados no Brasil devido, especialmente, à conversão do solo em pastagens, atividades agrícolas e produção de carvão vegetal, o que implica na perda de cobertura vegetal nativa. A dinâmica de substituição, que inclui tanto o desmatamento quanto os incêndios florestais, ocasiona alteração da paisagem, fragmentação dos habitats, extinção de espécies, invasão de espécies exóticas, e pode levar à erosão dos solos, à poluição dos aquíferos, ao assoreamento dos rios e ao desequilíbrio no ciclo de carbono. A ocupação do Cerrado ocorreu em diferentes momentos e velocidades. Muito provavelmente a abertura de áreas de pastagem para a criação de gado de corte foi a principal causa de desmatamento inicial no bioma. Nos anos recentes, entretanto, as pressões sobre o Cerrado são provenientes, sobretudo, da expansão do agronegócio brasileiro devido ao grande salto tecnológico do setor. Nos últimos trinta anos a cultura da soja no Cerrado do Centro-Oeste, por exemplo, teve um aumento de produtividade média de 1.200 kg/hectare para 3.200 kg/hectare. A região passou de 2% da produção nacional de soja nos anos 70-80, para 40% nos anos 90, e 60% nos dias atuais. A estimativa é que pelo menos 50% do bioma já tenha sido antropizado de alguma forma, o que equivale a perda de mais de 1.000.000 km² (ou 100 milhões de hectares) dos ecossistemas naturais do Cerrado. Vale destacar que entre 2008 e 2010, a taxa de desmatamento do Cerrado chegou ao mesmo patamar da taxa de desmatamento na floresta amazônica, com a média de quase 7.000 km² da vegetação natural perdida por ano.

Amda – Qual a sua opinião sobre os esforços do estado para conter o desmatamento no Cerrado e nos outros biomas?

LP – Apesar do “Desenvolvimento Sustentável” ser um dos quatro pilares do Plano Mineiro de Desenvolvimento Integrado (PMDI), planejamento estratégico do Governo de Minas Gerais elaborado para o horizonte de 2011-2030, infelizmente, na prática, não vemos os resultados esperados. Minas Gerais é o estado campeão do desmatamento da Mata Atlântica pelo quinto ano consecutivo, com 8.437 hectares de áreas destruídas somente no período de 2012-2013, segundo dados da Fundação SOS Mata Atlântica e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). É lamentável que um dos principais estados do país, estruturado e politicamente forte, permite uma situação como essa em tantos anos, ainda mais se tratando de um bioma já bastante alterado e ameaçado como a Mata Atlântica. Além disso, o grau de proteção dos ecossistemas naturais ainda não é adequado. O estado de Minas Gerais possui cerca de 9% do seu território coberto por unidades de conservação de proteção integral e uso sustentável, que se encontra abaixo da meta recomendada pela Convenção sobre Diversidade Biológica de 17% para os diferentes biomas. As unidades de proteção integral (parques, reservas biológicas etc.), que são reconhecidas como as mais importantes para a proteção da biodiversidade por serem mais restritivas para uso e manejo, cobrem somente cerca de 2% do território estadual. Áreas chave como a Serra do Gandarela continuam sem proteção e muitas das unidades de conservação já existentes ainda não estão devidamente consolidadas, com regularização fundiária e plano de manejo não implementados. Vários elementos essenciais para uma boa política ambiental ainda não foram desenvolvidos no estado: o Plano Estadual de Biodiversidade não foi concluído até o momento; os incêndios proliferam em todo o estado, inclusive dentro das unidades de conservação; continua o uso do carvão vegetal proveniente das matas nativas; ainda não possuímos uma estratégia de mitigação e adaptação às mudanças climáticas; e a sustentabilidade não está internalizada no planejamento estratégico estadual. Portanto, a proteção da biodiversidade ainda é bastante frágil em Minas Gerais. O mais preocupante é que nenhum dos candidatos postulantes ao Governo do estado nas eleições de 2014 estão dando a devida importância ao tema, mesmo diante de um quadro alarmante de escassez de água, poluição, perda da biodiversidade e serviços ambientais, que afetam diretamente a qualidade de vida das pessoas.

Amda – A criação de áreas protegidas seria uma solução eficiente? O que mais deveria ser feito?

LP – Sem dúvida as unidades de conservação fazem parte da solução. As unidades de conservação continuam sendo o principal mecanismo de proteção da biodiversidade, a longo prazo, em todo o mundo, mesmo com todas as dificuldades para implementação e reconhecimento público dessa forma de uso da terra. São mais de 177 mil unidades de conservação, em praticamente todos os países do mundo, cobrindo 12,7% da superfície do planeta e 1,6% dos oceanos. Esses números expressivos são acompanhados de uma ampla discussão sobre o papel das unidades de conservação no desenvolvimento sustentável e para o bem estar humano. As unidades de conservação estão sendo reconhecidas, cada vez mais, como elementos indispensáveis para a conservação de biodiversidade e recursos hídricos, além de promover oportunidades para a pesquisa científica, educação ambiental, turismo e outras formas menos impactantes de geração de renda, juntamente com a manutenção de serviços ecossistêmicos essenciais à qualidade de vida das pessoas. Muito embora o conhecimento sobre o impacto positivo das unidades de conservação na cadeia econômica ainda esteja em estágio inicial, informações dessa natureza precisam ser amplamente divulgadas e compreendidas pelos diversos setores da sociedade, e integradas aos planos e outras estratégias de conservação e projetos de desenvolvimento em diferentes territórios no Cerrado e outros biomas no Brasil.

Amda – Qual a porcentagem de área protegida do bioma? É suficiente para garantir sua preservação?

LP – Cerca de 8% do território do Cerrado é coberto por unidades de conservação pública e privada. A maior parte é constituída por unidades de conservação de uso sustentável, principalmente as áreas de proteção ambiental (APA). As unidades de conservação de proteção integral (parques, reservas biológicas, estações ecológicas etc.), representam somente 3% do território do Cerrado. A meta brasileira considerando os compromissos da Convenção sobre a Diversidade Biológica-CDB, do qual o país é signatário, é alcançar 17% do bioma por meio de unidades de conservação previstas na Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação-(Snuc) e outras categorias de áreas protegidas oficialmente reconhecidas (reserva legal, área de preservação permanente e terra indígena). A literatura científica vem demonstrando que regiões de grande biodiversidade como o Cerrado e a Mata Atlântica podem precisar de muito mais áreas para garantir a proteção do patrimônio biológico a longo prazo. Estudo recente para a fauna de vertebrados da Mata Atlântica indicou, por exemplo, que seria necessário, no mínimo, 30% de cobertura florestal para a manutenção de populações viáveis de várias espécies. Na Mata Atlântica será preciso recuperar a floresta, como também em algumas partes do Cerrado para atingir esse nível de cobertura da vegetação natural. Mas, em algumas áreas do Cerrado ainda é possível tomar decisões que possam manter a cobertura da vegetação natural em níveis acima desse limiar.

Amda – Além do desmatamento, quais são, atualmente, as maiores ameaçadas ao Cerrado?

LP – Algumas atividades econômicas ainda não encontraram o caminho da sustentabilidade e conciliação da produção com a conservação da biodiversidade. É histórico a demanda por carvão vegetal para a indústria siderúrgica no Cerrado, predominantemente nos polos de Minas Gerais e, mais recentemente, do Mato Grosso do Sul. Do total de cerca de 9,5 milhões de toneladas de carvão vegetal produzido no Brasil em 2005, 49,6% foram oriundos da vegetação nativa. Além disso, 64 milhões de hectares são ocupados por pastagens cultivadas e 22 milhões de hectares por culturas agrícolas no bioma. A pressão dessas atividades sobre os ecossistemas naturais do Cerrado ainda é agravada pelas mudanças climáticas. O desequilíbrio no estoque de carbono do Cerrado, devido ao seu histórico de ocupação e atual taxa de desmatamento, representa uma relevante fonte de emissão de gás de efeito estufa dentro do panorama brasileiro de emissões. Avaliações do Painel Brasileiro para Mudanças Climáticas-PBMC indicam que o Cerrado deverá ser bastante afetado e a previsão é de aumento da temperatura na região, e diminuição da precipitação, com possibilidades de aumento de incidência de incêndios e ampliação das formações campestres. Estudos da Unicamp e Embrapa apontam, como consequência das alterações climáticas, a provável redução na produção de algodão (-11%), arroz (-8%), milho (-12%) e soja (-21%) no Cerrado. Além de afetar as pessoas e a produção agrícola, estudos indicam também consequências para a biodiversidade, como a redução, até 2050, de habitats apropriados para o pequi (Caryocar brasiliense), planta nativa bastante utilizada na culinária regional. A Política Nacional sobre Mudança do Clima incentivou o lançamento de um plano orientado à região do Cerrado, o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Bioma Cerrado (PPCerrado). Lançado em 2010, o PPCerrado é coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente e tem como objetivo promover a redução contínua da taxa de desmatamento e da degradação florestal, bem como da incidência de queimadas e incêndios florestais no bioma. As diretrizes do PPCerrado incluem a integração e aperfeiçoamento das ações de monitoramento e controle de órgãos federais, visando à regularização ambiental das propriedades rurais, gestão florestal sustentável e combate às queimadas; o ordenamento territorial, visando à conservação da biodiversidade, proteção dos recursos hídricos e uso sustentável dos recursos naturais; e o incentivo a atividades econômicas ambientalmente sustentáveis, manutenção de áreas nativas e recuperação de áreas degradadas.

Amda – Quais medidas o governo e a sociedade deveriam tomar para preservar este bioma tão importante para a biodiversidade mundial?

LP – Acredito que, uma sociedade sustentável, que aumente o capital social e equidade, e melhore o bem-estar humano, requer a integridade, resiliência e proteção dos ecossistemas naturais e sua biodiversidade. O capital natural (biodiversidade, serviços ecossistêmicos e recursos naturais) é a base para o desenvolvimento sustentável e para o bem-estar humano, ou seja, é preciso reconhecer que o ser humano precisa da natureza para prosperar. É a natureza que proporciona os ganhos no capital humano (população sadia, seu conjunto de habilidades e conhecimentos etc.) e no capital físico (ferramentas, máquinas, edifícios etc.), por meio da transformação de recursos naturais via uso de tecnologias, ou seja, o nosso bem-estar é um reflexo do estado do ambiente natural. Com o ritmo da mudança e a generalização da degradação dos ambientes naturais, estamos perdendo muitos produtos e serviços prestados pelos ecossistemas naturais. Nesse contexto, nosso desafio é contribuir para a reversão desse quadro de degradação e buscar, junto com a sociedade, as soluções e alternativas para o desenvolvimento sustentável. Nesse contexto, três dimensões para alavancar a transição para o modelo de uma sociedade sustentável são essenciais: (a) proteger a base do capital natural crítico capaz de sustentar as necessidades da sociedade e da proteção da biodiversidade em longo prazo, especialmente através de unidades de conservação públicas e privadas; (b) apoiar o desenvolvimento de uma governança cada vez mais eficaz através do alinhamento de políticas adequadas, decisões de investimento para o desenvolvimento e capacitação institucional; e (c) colaborar na transformação dos sistemas de produção e consumo em escala para atender as necessidades humanas sem a erosão do capital natural crítico. Somente um esforço conjunto de toda a sociedade, com diálogo, integração multissetorial e fundamentado no melhor conhecimento técnico-científico, será possível fazermos uma transição para o desenvolvimento sustentável das cidades e dos territórios.

Amda – Há 18 anos, uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC 115/95) que eleva o Cerrado à categoria de Patrimônio Nacional, garantindo sua preservação por lei, aguarda aprovação. A Caatinga foi incluída no texto em 2010, alterando a proposta (PEC 504/2010). A expectativa era de que a PEC, já aprovada pelo Senado Federal sem alterações, fosse votada na Câmara em julho deste ano. No entanto, é provável que ela só seja apreciada no Plenário depois das eleições. Qual a importância de uma lei como esta? O senhor é a favor da proposta? Quais motivos levam uma proposta como esta, voltada à conservação de um bioma tão importante, demorar tanto tempo para ser aprovada?

LP – Qualquer norma legal que reforce a proteção e uso sustentável dos ambientes naturais são válidas e devem ser elaboradas e implementadas. A Mata Atlântica é um exemplo. O bioma é reconhecido como Patrimônio Nacional na Constituição Brasileira e protegido pela Lei nº 11.428 de 2006, que dispõe sobre a utilização e proteção da sua vegetação nativa. Mesmo a Mata Atlântica já sendo reconhecida como um hotspot mundial de biodiversidade, sua lei de proteção demorou 14 anos para ser aprovada no Congresso Nacional. Esse é um reflexo da falta de prioridade e fragilidade política da área ambiental. Se os governos tivessem compromissos mais claros e planejamento, programas e investimentos de longo prazo para a proteção e uso sustentável dos biomas brasileiros, talvez não fosse necessário mencionar na Constituição a importância dessas regiões. A proteção desses biomas poderia e deveria ser reconhecida e praticada pelos governos e pela sociedade de forma mais sistemática e mais naturalmente.