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Entrevistas

Iniciativa particular tenta salvar felinos silvestres brasileiros

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Iniciativa particular tenta salvar felinos silvestres brasileiros
Cristina Gianni / Crédito: Estadão

No município de Corumbá de Goiás, na “Fazenda Preto Velho”, a 80 quilômetros de Brasília, afastada da corrupção, mas envolta às burocracias e exigências dos órgãos ambientais, está a organização não governamental NEX.

De lá, saem os rugidos de felídeos que encontraram no local sua garantia de sobrevivência. Fundada por Cristina Gianni há quase treze anos, a entidade, que hoje abriga onças, jaguatiricas e jaguarundis, tem por objetivo a preservação da vida de felídeos da fauna silvestre brasileira ameaçados de extinção. Além disso, o NEX trabalha na defesa do habitat natural desses animais e contra a caça. Tudo isso, integrando as populações rurais mais carentes ao trabalho de defesa e preservação através de conscientização, treinamento e educação ambiental.

A vida de Cristina, ex empresária que possuía uma loja em um shopping de Brasília, mudou no dia em que conheceu Pacato no zoológico de Brasília. “Compreendi o quanto ignorava o sofrimento dos animais sem destinação. Vi uma onça suçuarana chamada Pacato, que hoje está no NEX, e que estava presa em uma jaula de dois metros por um, há quatro anos”, comenta a presidente da entidade.

Ela descobriu que o animal havia sido encontrado pelo Ibama na Serra do Cachimbo, sul do Pará e, há quatro anos, vivia dentro da pequena jaula, por isso se tornou obeso e com hipertrofia dos membros posteriores. Os profissionais do zoológico informaram que já tinham tentado de tudo para que o animal se adaptasse ao recinto das suçuaranas, porém como o felino tinha muitas sequelas de sofrimento e era muito humanizado, sua adaptação tornou-se quase impossível, restando a jaula como única opção. “Fiquei tão impressionada com aquele olhar carente, mas ao mesmo tempo, tão altivo e cúmplice, que saí de lá disposta a levar Pacato para minha fazenda. Ele era um animal-problema, ou seja, aquele que tem sua mãe morta e fica à mercê do humano. Nem imaginava que ali estava nascendo o NEX”, explica.

Assim, a propriedade familiar de Cristina tornou-se um criadouro conservacionista que, apesar das dificuldades financeiras e da burocracia, tem sobrevivido graças ao carinho, disposição e capacidade dos voluntários. A NEX não tem receita mensal e seus recursos vêm de poucos doadores, do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) e saem, principalmente, da renda pessoal de Cristina e seu marido, Silvano Gianni.

Amda – Atualmente, quantos animais e quais as espécies o NEX abriga?

Cristina Gianni – Abrigamos vinte e duas onças (quatorze pintadas, oito suçuaranas), três jaguatiricas e um casal de jaguarundis. Fora Xangô, o macho melânico de vida livre, que nos deu a honra de partilharmos do seu território e está fazendo história mundo afora. Tenho o sonho de abrigar as oito espécies de felinos, mas a onça sempre ganha o lugar antes dos outros.

Amda -Todos eles são passíveis de reintrodução na natureza? Caso não, qual será a destinação deles?

CG – O NEX é um criadouro conservacionista e não um local de triagem. Os felinos que chegam ficam para sempre. Em princípio a meta era atender aos animais-problema, que ficavam sofrendo abrigados em condições impróprias, nos mais longínquos pontos do país, sob as mais variadas circunstâncias. Tinha que escolher o pior entre os piores casos, já que era impossível abrigar todos. Porém, conheci alguns animais muito especiais, com tanta ferocidade e ojeriza aos humanos que entendi os sinais do essencial para eles: a liberdade. Tenho hoje dois indivíduos de panthera onca, Ferinha e Ogum, exatamente com este perfil, sendo preparados para a reintrodução na natureza.

Amda – Algum já foi reintroduzido com sucesso?

CG – Tivemos nosso primeiro projeto, o Projeto Ferinha, aprovado agora pelo ICMBio, órgão responsável pelo plano de conservação e manejo das pantheras onca. Uma vitória plena, um projeto oficial, que abre importante precedente para a conservação da onça pintada. O indivíduo em questão se chama Ferinha, uma onça, e se tornou um macho maravilhoso! Foi encontrado no Pará e, desde pequeno, não demostra nenhum tipo de inclinação para a convivência com humanos. Assim, tem sido preparado para possível reintrodução à sua terra natal.

Acredito que será muito difícil conseguir sucesso tanto nos recursos financeiros para o projeto quanto na sobrevivência dos felinos libertados. Com relação aos recursos, os órgãos ditos financiadores não estão preparados para avaliar este tipo de projeto, extremamente abrangente. Penso que só podemos dizer que uma onça voltou para a vida livre se conseguir se alimentar como predador topo de cadeia que é; conquistar seu território de forma integral, sobreviver aos caçadores e gerar filhotes que sobrevivam à sanha humana. É um trabalho incansável de monitoramento e proteção, que compreende pelo menos um território de 200 quilômetros quadrados (km²) de área, sob a ótica de vários especialistas, para cada indivíduo e sua progênie.

Acabamos de levar um “NÃO” do Fundo Nacional da Amazônia (FNA) cujos técnicos não souberam nem avaliar em valor monetário, a meu pedido, a biodiversidade de uma área de floresta a que me referi. São dois universos, duas paralelas que jamais se encontrarão: o dinheiro para fazer e a competência para executar. Classificaram nosso projeto de excessivamente acadêmico, como se um trabalho bem feito ao longo do tempo, produzindo e protegendo não só vidas, mas inúmeras publicações científicas, não trouxesse nada de retorno para as populações locais. Aprenderam apenas a cartilha da sustentabilidade barata e com suas canetas lançam esmolas aqui e acolá onde podem recolher resultados imediatos para mostrar serviços aos países doadores.

Mas, apesar do enorme ‘estímulo’, vamos reapresentar o projeto em breve. Ferinha será reintroduzido com ou sem o FNA, ou não me chamo Cristina Gianni.

Amda – Quantas pessoas envolvidas no trabalho?

CG – Poucas e todas voluntárias: biólogos, veterinários, estagiários. Priorizo um ambiente adequado para as onças e não para as pessoas. Cada um que está no projeto, vale por dez.

Amda – Como é a estrutura e funcionamento do NEX? Já possui clínica veterinária?

CG – Felizmente, a prioridade sempre são os animais e o dinheiro é curto. Tenho uma ajuda importante do Ministério Público que, embora esporádica, nos proporciona passos mais largos, como a cozinha própria para alimentação dos felinos que consegui construir. Mas, como a justiça é lentíssima, a ajuda não consegue ser efetiva. Em vez de construir a clínica, faço parceria com bons profissionais e, se necessário, levamos os felinos até as clínicas. Mas o importante é contar com excelência profissional a qualquer hora e no próprio local. Vidas não esperam.

Amda – De onde vem o recurso para manter a fazenda?

CG – Os recursos são nossos e, muito eventualmente, de alguns colaboradores. Nada com que se possa contar certo. Há de chegar o dia em que poderei fazer a seguinte conta: entrou X e gastei Y.

Por enquanto é só gastei Y. Meu marido e eu nos privamos de algumas coisas a mais que poderíamos ter feito nesses doze anos, mas, e daí? Nada é mais gratificante do que trabalhar com esta causa. Sei que a primeira reação das pessoas é me achar excêntrica , então, explico logo numa linguagem fácil de entender: gosto de coisas belas e luxuosas mas, em vez de uma bolsa de R$50000,00 opto por abrigar uma onça. Uso a bolsa que custa pouco feliz da vida e não fico fazendo merchandising de marcas famosas – o que acho ridículo.

É uma opção pessoal de investimento. Apenas isso.

Amda – Quantos quilos de carne são necessários para manter os animais diariamente?

CG –Tenho um doador de carne suína que é meu grande parceiro. São 50 kg por dia e, sem essa doação, eu jamais poderia ter crescido como cresci. Mas, ainda preciso de carne de boi, carne de frango para que a alimentação seja mais diversificada.

Amda – Quais os projetos atuais? Existe algum de conservação de espécies?

CG – Fora dois projetos de reintrodução de onças pintadas em curso, tivemos o privilégio de capturar um indivíduo de vida livre, colocar nele uma coleira GPS e o estamos monitorando 24 horas por dia. Dei-lhe o nome de Xangô e todos os nossos esforços, no momento, estão em função de protegê-lo e acompanhar seu caminho de vida, aprendendo com ele como é a vida em liberdade.

Estamos prestes a contribuir com material biológico do nosso plantel, a pedido do Cenap (Centro Nacional de Predadores), integrante do ICMBio, com as pesquisas do professor Eduardo Eizirik, do Laboratório de pesquisa Genômica e Molecular da PUC RS.

Amda – É realizado algum trabalho de Educação Ambiental no entorno da fazenda já que a população local é carente e desassistida?

CG – Sempre pensei que não se estabelece um projeto com a abrangência do Nex, sem que o entorno da sua sede se beneficie naturalmente. Quando falo em carência desse entorno, me refiro ao pior tipo de carência: desenvolvimento humano, lapidação pela educação, cultura e arte. Geramos, só com a presença do Nex na região, um foco turístico importante que impulsionou o crescimento vocacional da região que é muito bonita: o turismo ecológico.
Recebemos muitas embaixadas que, por si só, elegeram nosso santuário como um lugar especial e nunca param de nos visitar. Escolas, idem. Foi o público que se estabeleceu naturalmente, sem forçarmos nada. Estes grupos de visitantes geram serviços de alimentação, guias do projeto e, assim, a roda começa a girar. Não é preciso reinventá-la. Quando onças começam a gerar dinheiro, algo muda.

Este nosso projeto se chama “Onças ajudando gente” e, recentemente, sob parceria e patrocínio da Renctas, conseguimos promover um curso de artesanato em cerâmica que mudou a cabeça das pessoas. Agora, vamos partir para aperfeiçoar os produtos e comercializá-los, priorizando sempre a criatividade de cada pessoa. Também publicamos uma HQ fascinante, que estamos reeditando agora: “Garras e mãos pela preservação”. Um livrinho que conta a trajetória de sobrevivência dos nossos felinos, destinado às escolas rurais, tendo como público alvo populações simples que habitam as fazendas, populações ribeirinhas e nativas de florestas onde pais e filhos possam entender a história contada pelas figuras. Sabemos que em muitos destes lares vivem os matadores de onças e uma linguagem pura, lúdica, nunca ofende, ao contrário.

O projeto, que tenho em mente para o entorno da sede, é colocar internet urgente no povoado próximo. É preciso que o álcool deixe de ser a única referência de masculinidade plena na cabeça dos jovens. Dar informação como primeira opção, é uma meta que persigo. É preciso urgente religar o conceito de que o futuro da criança é o planeta ou não haverá futuro algum.

Amda – Como estes animais chegam até vocês?

CG – Normalmente os Ibamas regionais procuram o Nex tentando a destinação do felino antes mesmo de resgatá-lo, pois é difícil abrigar um felino ainda que por pouco tempo. Como a demanda é grande, consegui uma parceria maravilhosa com a família Camargo que está ultimando o Nex São Paulo, na fazenda da sua propriedade de nome Santa Rosa, na região de Amparo.

Desta forma, vamos abrir vagas para os felinos em maiores condições de risco, muito em breve, se vencidas a burocracia e exigências intermináveis da Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo que parece querer transformar o Nex Santa Rosa em um hotel-hospital 6 estrelas para onças.

Muito louvável do ponto de vista de querer algo exemplar. Mas, terrivelmente retrógrado quanto à não aprovação do que já está pronto para funcionar, estabelecendo-se um prazo para o restante ser construído. O NEX Santa Rosa poderia estar abrigando tranquilamente oito onças no momento. Vejo seus proprietários desestimulados por um investimento que já beira os R$700.000,00 não ser considerado nem como um possível começo.

Amda – Quais as maiores necessidade da instituição?

CG – Um freezer vertical grande que nos possibilite estocar mais carne no local do santuário. Transportar carne várias vezes por semana é um gasto grande de combustível e ocupa o tempo que poderíamos estar dedicando aos cuidados com os animais; doação de presas silvestres (excedentes de criadouros registrados) para treinamento e adaptação dos felinos que estão sendo preparados para soltura e construção de dois grandes recintos porque, como o Nex Santa Rosa não começa, fiquei com mais onças que recintos. Estou falando em mais ou menos R$200.000,00 para construir os dois recintos.

Amda – Como a sociedade pode contribuir?

CG – A sociedade precisa compreender que ONGs, como a que fundei, não podem receber dinheiro de qualquer que seja o governo. Se os governos fizessem seu papel, impedindo os desmatamentos, o Nex nem precisaria existir. Onças precisam de florestas e de liberdade! Portanto, seria uma incoerência eu ficar passando o chapéu para receber o que sobra do governo, quando sobra. A biodiversidade brasileira está largada em nome do PAC !

A sociedade pode contribuir com doações em dinheiro na conta bancária do Nex. Nossa contrapartida a todos os doadores é o projeto estar sempre aberto para mostrar que os únicos beneficiários das doações são os felinos.