Diferença Ambiental

Flávia Quadros: “animais adoecem e sofrem com as mesmas doenças que nós”

Flávia Quadros: “animais adoecem e sofrem com as mesmas doenças que nós”

Mineira de Divinópolis, a médica veterinária Flávia Quadros é referência na luta pelos direitos animais. Em entrevista à Amda, a protetora falou sobre seus maiores desafios e a vocação pela causa animal. Desde criança, Flávia alimentava cães e gatos doentes e filhotes abandonados. Na idade adulta, o trabalho continuou com a implementação de políticas públicas de inclusão de animais no sistema de saúde e na legislação.

Flávia explicou o que são as zoonoses, que grande parte da população entende como doenças transmitidas de animais para humanos, acabando com a ideia de que animais são “vilões” e humanos “mocinhos”.

Confira entrevista completa:

Amda – Como e quando começou seu interesse pela causa animal?

Flávia Quadros – Meu interesse por animais é natural, não fui educada para isso. Mas fui apoiada, apesar de ter tido alguma resistência familiar no início.

Quase toda criança gosta naturalmente de animais, mas meu interesse foi crescente. Ainda criança iniciei minhas primeiras e pequenas ações de defesa animal, como alimentar cães e gatos doentes e filhotes abandonados. Essas ações foram crescendo à medida que as possibilidades aumentavam. Certa de que, apesar de muita dedicação e empenho, estávamos ajudando pouco, o que ainda é realidade, sempre acreditei que devemos abrir novos caminhos e diminuir a limitação de nossas ações.

Amda – Você coleciona trabalhos como ativista e defensora dos animais. Qual deles mais te marcou?

Flávia Quadros – Talvez não seja tão simples eleger um. Mas, basicamente, são três em ordem cronológica, pois eles tiveram diferentes impactos para os animais e para mim, enquanto pessoa.

1 – Participação na reformulação do programa de manejo de cães e gatos do município de Belo Horizonte, iniciado em 2006, em tratativas com o então secretário de saúde, Helvécio Miranda. Desse episódio, que durou cerca de três anos, foi abolido o uso da carrocinha, centros de castração fixos e móveis foram inaugurados, foi suspensa a matança indiscriminada de animais pela prefeitura e o envio de animais para uso de seus corpos vivos em ensino e pesquisa. Também foram promovidos treinamentos e a capacitação de veterinários das prefeituras de BH e da região metropolitana para a técnica de castração rápida, capacitação de agentes de endemias da PBH para tratamento e manuseio correto e não agressivo dos animais, por meio de curso específico, implementação de sistema de retorno de animais pós-castração para seus locais de origem, inauguração de um programa de adoção para animais recolhidos pela PBH e renovação do gerenciamento do Centro de Controle de Zoonoses de BH.

2- Tomada de responsabilidade como interventora judicial da Sociedade Mineira Protetora dos Animais (SMPA), abrigo de animais abandonados mais antigo de Minas Gerais, situação mais difícil e complexa assumida até então, por mim. A entidade, em ruínas em todos os aspectos, era como um holocausto animal. Sua sede era o maior ponto de abandono e desova de animais de BH. Tivemos a oportunidade de assumi-los sem fazer um único abate de animal enfermo. Cada animal teve investimento e nosso esforço para seu reestabelecimento. Acabamos com parasitoses, infestações, endemias de doenças virais letais múltiplas, mudamos os animais para local digno e que oferta muita qualidade de vida, desativamos o local antigo e decadente, fizemos adoções responsáveis e monitoradas de todos os que tinham condição de adoção, além de mantermos os remanescentes – na maioria idosos ou enfermos crônicos – com qualidade de vida, alimentação natural e tratados sob a ótica da medicina integrativa.

Todo o trabalho feito só foi possível com o apoio constante do Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), do Dr. Carlos Eduardo Ferreira Pinto, da Dra. Anelisa Cardoso e da Dra. Luciana Imaculada.

3 – Participação na tramitação, processo de sanção e escrita do texto final da lei 21970/16; lei que é divisora de águas em Minas na proteção de fauna doméstica. Por meio dela, as prefeituras passam a assumir a responsabilidade legal de castrar, identificar e zelar pelos seus animais; passa a ser proibida a matança indiscriminada de animais como forma de controle de doenças e controle reprodutivo no Estado. Com a lei, o MPMG pode cobrar ações em prol da sua plena execução. Marco legal até então inexistente.

Amda – Dados da Organização Mundial da Saúde indicam que há cerca de 30 milhões animais abandonados no Brasil hoje, dos quais 10 milhões são gatos e 20 milhões, cachorros. Quais os caminhos para mudar essa realidade?

Flávia Quadros – Sem nenhuma dúvida, o caminho passa pela educação e diminuição do abismo social. Não há como dissociar o problema animal do social. Uma sociedade faminta, deseducada, inapta ao discernimento, desatenta e desempregada, que não tem renda para cobrir sequer o básico de suas necessidades primárias, dificilmente vai estender seu olhar e ações para os animais, ainda que estejam em seus quintais.

É necessário incluir noções profundas de planejamento familiar, no que tange à escolha responsável e consciente de assumir animais para o seio familiar humano, para a guarda responsável e o bem estar animal. É preciso inserir esses conceitos no sistema educacional e levá-los para dentro da escola, a fim de que essa informação chegue às famílias. É necessário entender que a vida animal é interligada a das pessoas e também ao meio ambiente, o adoecimento e sofrimento de um reflete igualmente nos demais.

Considero a educação, o pilar número 1 e pivô das ações, mas, sem dúvidas, o mais difícil de ser implementado, pois, politicamente, tudo que pode trazer mudanças profundas incomoda e ameaça o status quo de uma parte da classe governante e legisladores.

Amda – E quais os impactos do descontrole da população de animais domésticos à saúde pública?

Flávia Quadros – Sabemos que 75% das doenças emergentes no mundo são de múltiplos hospedeiros, as famosas zoonoses. As pessoas acreditam que que zoonoses são doenças transmitidas de animais para pessoas, colocando os animais como “vilões” e os humanos como “mocinhos”. Quando, na verdade, o conceito de zoonose nada mais é que doença de múltiplos hospedeiros, que pessoas e animais hospedam.

O que ocorre é que animais em descontrole não são incluídos no círculo de consideração moral das pessoas. Estes animais não recebem zelo ou cuidados, tem escassa alimentação, não tem acesso a água de qualidade, e as condições ruins de vida fazem com que eles sejam mais facilmente acometidos não só por doenças de múltiplos hospedeiros, mas outros tipos de doença também.

Quando temos um coletivo de animais domésticos abandonados à própria sorte e sujeitos a adoecerem pela baixa qualidade de vida que possuem, eles apenas adocem na nossa frente. Eles servem como sentinelas, para nos mostrarem que aqueles patógenos estão circulando na sociedade, mas não significa que eles serão transmissores de doenças, significa que adoecem antes de nós, pois tem uma qualidade de vida muito ruim. Não existe uma relação de “vilão” e “mocinho”, os animais adoecem e sofrem com as mesmas doenças que nós.

Amda – Podemos dizer que há avanços nas políticas de proteção e na forma como a sociedade enxerga os animais?

Flávia Quadros – Podemos dizer que existe um despertar, na minha opinião. Vemos ações isoladas, insuficientes e desconexas, não baseadas em orçamento público e criação de pastas para esse fim, e sim na base e dependência de emendas parlamentares, demonstrando a fragilidade e não garantia da perpetuidade das mesmas.

Não temos ainda programas de estado, tampouco de governo, afinal, o que não tem orçamento para executar ações de fato, não existe e demonstra nítido desinteresse governamental. Ainda assim, dada à desvalorização histórica da vida animal, vemos, sem dúvidas, um início e um rompimento da inércia que até tão pouco tempo era realidade absoluta no Estado – também na minha opinião.

Em relação a Minas Gerais e o Brasil, ainda não atingimos um arcabouço legal que inspire e assegure, minimamente, um alicerce que sustente mudanças reais. Na minha opinião, nos últimos oito anos em que a bandeira da proteção animal está sendo bastante citada e exaltada no nosso Estado, ações concretas e esforços para viabilizar o que há de mais básico, seguem praticamente na espera de quem queira trabalhar para legislar mais tecnicamente por essa causa.

Amda – Pode deixar uma mensagem?

Flávia Quadros – Existe solução e um caminho claro para atingi-la. Saibamos discernir perante as urnas, quem está para impedi-la e quem está para promovê-la. As soluções não virão por meio de ações populistas, pulverizadas, descontinuadas e itinerantes, logo, eleitoreiras. Na proteção animal, é preciso também construir o saneamento básico, que, em falta, impede qualquer estrutura de se sustentar.

Proteção animal se faz, primeiramente, socorrendo animais em sofrimento, vítimas da omissão de todo um sistema, em paralelo à construção de iniciativas reais, que possam fazer com que essa omissão um dia tenha fim.