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Entrevistas
Se a ciência não estiver presente no Código Florestal é porque os congressistas não quiseram escutar
Quando esta entrevista acabava de ser editada, o Código Florestal estava sendo aprovado no Senado, já quase no fim do dia 6 de dezembro. Há menos de uma semana, o secretário da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e professor do departamento de ciência florestal da Universidade Federal Rural de Pernambuco José Antônio Aleixo da Silva nos explicava por que a comunidade científica não queria que o Código Florestal fosse votado agora e também alertava sobre problemas com consequências sérias para a população, como a medição equivocada das áreas de preservação permanente no leito dos rios. Além disso, nessa entrevista, o pesquisador fala sobre a necessidade de um código mais abrangente, que leve em conta toda a biodiversidade do país e também as cidades. Os senadores parecem ter feito ouvido de mercador. “Por que tanta pressa?, questionou a SBPC.
O projeto do novo Código Florestal (PLC 30/2011) segue agora novamente para a Câmara dos Deputados para que sejam aceitas ou não as mudanças aprovadas no Senado.
EcoDebate – ASBPC e a Academia Brasileira de Ciência (ABC) vêm assumindo um protagonismo na discussão sobre o Código Florestal. Como essas entidades se envolveram nesse debate?
José Antônio – A SBPC, em parceria com a ABC, entrou nessa discussão mais por uma demanda da própria comunidade científica, porque os deputados e senadores estavam sempre falando que consultavam a ciência, mas na realidade consultavam pessoas que eles achavam que tinham interesses comuns com eles. Então, a própria comunidade científica começou a perguntar por que razão a SBPC e a ABC não entravam na discussão. Em função disso, foi feito um grupo de trabalho em que as duas entidades procuraram juntar pessoas das várias áreas que tivessem condições de discutir o código florestal. Então, não foi a convite de senadores e deputados, muito embora eles tenham falado que a SBPC e a ABC entraram na discussão tarde.
EcoDebate – O que a ciência tem a contribuir em uma discussão como a do Código Florestal?
J.A – Primeiro quero dizer que seria muito mais abrangente falar de um código de biodiversidade, no qual a própria floresta seria uma parte do todo. Mas, independentemente disso, as florestas são uma comunidade complexa, então, um código florestal é algo muito complexo e que envolve uma série de ramos da ciência, logo, a ciência nunca poderia ficar de fora. E, infelizmente, a discussão estava se passando com parlamentares com interesses próprios, representando uma determinada bancada, e a ciência estava de fora. E nessa discussão têm que ser envolvidos engenheiros florestais, agrônomos, biólogos, antropólogos, psicólogos, todas essas profissões têm que colaborar na construção de um instrumento legal que seja bom para o país e não para um grupo A ou B de parlamentares.
EcoDebate – Falta embasamento científico no projeto que está prestes a ser votado no Senado?
J.A – A proposta que foi aprovada na Câmara estava muito ruim. Algumas pessoas pensam que o código florestal de 1965 deveria ser imutável.Aa ciência não pensa isso de maneira alguma, até porque o avanço científico da ciência nesses 45 anos foi tremendo. Então, querer manter um código da década de 1960 imutável não faz sentido. Agora, querer modificá-lo para favorecer interesses de grupos também não funciona. Então, a ciência pode contribuir tremendamente com tecnologias modernas na construção de um instrumento legal que seja adaptado às condições atuais e futuras do Brasil. Falar que o código de 1965 ou que o de 1934 não tiveram ciência também é um erro: ambos tiveram ciência, mas as coisas mudaram em relação à ciência e à tecnologia que eram disponíveis na época. Então, é imprescindível que um instrumento legal desse tipo tenha um envolvimento científico de vários setores da comunidade científica.
EcoDebate – Quais são as principais inconsistências do projeto do Senado?
J.A – Na realidade, falamos de um projeto hoje e amanhã pode aparecer outro cheio de mudanças. Mas há inconsistências sérias que nós identificamos. O projeto do Senado modificou muito o projeto do Aldo Rebelo, que era muito ruim. Então, hoje, apesar de não ser o ideal, é bem melhor do que o que saiu da Câmara. Mas mesmo assim existem coisas que não fazem sentido. Por exemplo, a medição de leito de rio pelo leito regular: a própria Constituição diz que essa medição deve ser feita pela abrangência máxima da área de inundação de um rio e não do seu leito regular. Então, é a partir da área de inundação que se deve contar as áreas de preservação permanente [APPs]. Os parlamentares agora querem fazer uma coisa chamada de leito regular, e não está explicito em canto nenhum como será mensurado esse leito regular. Será que é dividir por dois a parte de cheia com a parte mais seca do ano? Não está claro, e com isso vai haver uma redução muito grande de áreas de preservação permanente, o que pode causar sérias consequências. Outro problema é computar área de preservação permanente como área de reserva legal, que apesar de terem algumas funções parecidas, são diferentes. As APPs, como o próprio nome diz, são áreas de manutenção de biodiversidade, fluxos gênicos, corredores ecológicos. E a reserva legal são áreas que permitem a exploração racional. Mas as coisas mudam muito quando se põe em prática esse tipo de exploração racional,. Por exemplo, está sendo permitido que os mangues, caso já sejam área consolidada, se tornem passíveis de construções. Então, de uma hora para outra, essas áreas podem passar a ser áreas de construção de imóveis, de carcinocultura [produção de camarões em cativeiro]. Mas aí eu lhe falo isso, mas não sei se posso sustentar isso amanhã, porque quem garante que não poderá mudar daqui para amanhã? Porque na realidade as coisas têm mudado muito. Sobre o conceito de áreas consolidadas, por exemplo, algumas coisas fazem muito sentido. Existem agricultores que trabalham, por exemplo, no Rio Amazonas, em área de preservação permanente É uma população de agricultores familiares que vivem em matas ribeirinhas e exploram essas matas. Isso é uma coisa. Mas o que está ocorrendo é que estão pegando os exemplos pequenos, trabalhando em cima deles e tentando extrapolar para tudo. Nós lançamos um documento recentemente com 10 pontos.Lá está tudo explicitado direitinho: o que acreditamos que não deveria ser modificado e o que deveria ser modificado de outra forma. Mais um exemplo: uma coisa com que temos que ter muito cuidado é a introdução de [árvores] exóticas dentro de áreas de reserva legal. As pessoas têm que ter cuidado porque ‘exóticas’ não se referem simplesmente a eucalipto e pinus, existe uma série de culturas agrícolas produtoras de grãos que são exóticas. O perigo é se generalizar como exótica. É permitida na fase inicial a recuperação com árvores exóticas, mas isso não significa que se pode plantar grandes monoculturas. Então, o código é muito vasto, mas pelo menos tem uma coisa boa nisso tudo: se permitiu que fosse feita uma discussão bem mais ampla no país. Se esse código nunca foi respeitado, pelo menos para que no futuro seja.
EcoDebate – Que resposta a SBPC teve até o momento dos deputados e senadores quanto a essas críticas ao projeto de mudança do código florestal?
J.A – Ontem mesmo [1º de dezembro], a presidente da SBPC enviou uma carta para os senadores lamentando profundamente o que está acontecendo. Eles leem o que nós escrevemos, dizem que está tudo ótimo. Na Câmara foi assim: nós apresentamos o documento e parecia que ele seria aceito em totalidade, mas na hora de votar eles esquecem e nem se fala mais nisso. A mesma coisa ocorreu no Senado, embora o Senado tenha nos escutado muito mais do que a Câmara. Mas na hora da votação as nossas sugestões não pesam, o que pesa são os acordos de parlamentares e de bancadas.
A votação está prevista para acontecer logo…
Teoricamente sim, mas de uma hora para outra muda tudo. Provavelmente votarão. A ciência pediu um tempo mais longo para que fosse construído um código com embasamento científico, tecnológico, inovador. Mas nossos congressistas estão querendo a todo custo que isso seja aprovado até o final do ano.
EcoDebate – O senhor falou sobre discutir a biodiversidade. Esse tempo maior poderia favorecer a construção desse código de biodiversidade em vez de um código florestal?
J.A – Essa é uma ideia que muita gente defende. O profesor Aziz Ab’Saber defende que seja um código de biodiversidade, bem mais amplo. Por exemplo, um código florestal não pode deixar de fora a questão urbana. Agora, o senador Jorge Vianna falou uma coisa que vamos esperar que de fato se concretize. Ele falou que se pensa em aprovar agora o Código Florestal, mas que haverá dois anos para que se faça um código por biomas. Se isso for verdade, vamos pagar para ver, mas já é mais alguma coisa. Não dá para se tratar a caatinga com o mesmo Ada mesma forma que a Floresta Amazônica, o Pampa, o Cerrado. São todos biomas diferentes, então, vamos ver se pelo menos isso ocorre.
EcoDebate – Mas por que essa pressa dos parlamentares? Por que não discutir todos os biomas em um código de biodiversidade e inclusive tratar da questão urbana, já que como o senhor falou, todas essas questões são interligadas?
J.A – Nós também fazemos essa pergunta: por que tanta pressa? Eles [os parlamentares] devem saber mais do que nós. São interesses particulares de grupos. Na realidade isso virou uma batalha entre o agronegócio e os ambientalistas. Nós sempre defendemos que eles deveriam sentar e tentar um acordo no qual os dois lados cederiam em alguma coisa para que o país saísse ganhando. Se se aprova um código pendendo puramente para o agronegócio, o meio ambiente sofrerá muito; e se atenderem os requisitos ambientalistas estritamente sem levar em consideração a produção de alimentos também haverá problemas. Então, o ideal seria sentar e discutir um código para o país. Melhorou no Senado, mas ainda está muito distante do que o país merece.
EcoDebate – Até o momento ele pende para o lado do agronegócio?
J.A – Já foi pior. Nós sabemos que em qualquer sistema como o nosso, com as decisões a partir de votações, tudo depende muito do número de parlamentares. E tem parlamentar que vota e não sabe nem por que está votando, o partido simplesmente diz: vamos ter que votar a favor de A e contra B, então votam sem nem sequer ter ideia do que estão votando. Infelizmente é assim.
EcoDebate – O senhor comentou sobre os impactos sobre a cidade. Se o Código for aprovado como está, quais os impactos que a população pode sentir?
J.A – Nós estamos vendo por aí exemplos patentes, inundações de cidades, escorregamentos de morro, tudo isso são consequências de ocupações ilegais. Se formos fazer um levantamento de ocupações ilegais em áreas de preservação permanente do país, seria um número infinito. Agora, não se pode tirar essa população, mas se poderia tomar medidas de precaução, não permitir mais moradia nesses locais. As calhas de rios estão se tornando muito assoreadas, então, por exemplo, se você tem um rio profundo, com um volume X de água, ele passa fluindo normalmente. Mas se essa profundidade do rio diminui e o volume de água é o mesmo X, ela vai espalhar. E por isso vimos inundações tremendas. Portanto, não se pode pensar em um código que trata de florestas isolando as cidades, porque as consequências existem.
EcoDebate – O senhor falou sobre essa polarização entre o agronegócio e os ambientalistas acerca do código florestal. Mas acabou acontecendo também paralela à discussão do Código Florestal uma outra discussão sobre modelo de desenvolvimento e modelo de agricultura no Brasil. Setores ligados ao agronegócio vem apostando numa forma de lidar com o campo com grande impacto – isso é demonstrado pela grande utilização de agrotóxicos, pela extração ilegal de madeira, pelo predomínio da monocultura. Ao mesmo tempo cresce, ligada sobretudo aos movimentos sociais, uma defesa e uma prática de um modelo de agricultura baseado na agroecologia, numa relação mais harmônica com o meio ambiente. Como a SBPC trata essa questão?
J.A – Olha, não pode pensar que os solos são produtivos eternamente, é claro que se precisa de uma reposição nutricional nos solos. Isso a ciência pode fazer em níveis que não são tóxicos, o que ocorre é que pela avidez de produções altíssimas, estão exagerando tremendamente no uso de agrotóxicos, as monoculturas estão tomando conta de muitos locais. A vegetação plantada em si não tem culpa de nada, o grande problema é a gerência desses plantios. É necessário o uso de insumos agrícolas nas dosagens mínimas que não sejam contaminantes. É claro que a adubação orgânica substitui a adubação mineral, mas em certos casos a adubação mineral se faz necessária porque os solos se esgotam tanto que precisam de uma reposição artificial. A ciência prova que isso pode ser feito sustentavelmente, mas infelizmente a busca tremenda por lucros é que complica tudo. Hoje em dia, para produzir mais um determinado vegetal você chega até a sentir o veneno nos frutos. Isso é errado. A Embrapa está aí para provar, é referencia mundial, temos excelentes universidades agrícolas, que mostram que a produção sustentável é possível. A busca pelo lucro é que modifica toda essa concepção de produção sustentável. Então, é extremamente importante fazermos essa discussão sobre modelo de desenvolvimento para o campo. Essa discussão tem que envolver todos os setores, envolver também quem mora no campo. Como essas pessoas são tratadas? Quando há um problema ambiental, por exemplo, as pessoas deixam o campo e vão para os arredores de cidades com perspectivas de vida zero. Muitas vezes acontece de alguém arrendar a terra de um pequeno produtor, dizer a ele o que ele deve produzir, daí a pouco tempo essa pessoa compra a terra do produtor, aí ele pega o dinheiro que nunca viu, não tem uma assistência social de como gastar o dinheiro e gasta tudo em pouco tempo. Aí ele não tem mais dinheiro, não tem mais terra, não tem nada e vira um cidadão marginalizado.
EcoDebate – A SBC afirmou em documento recente que “o Brasil ainda não dispõe de uma política de ordenamento territorial apoiada em dados confiáveis sobre a aptidão agrícola das terras, restrições ambientais e legais, uso atual e potencial de uso das terras. O mesmo documento dizia que o país não tem um planejamento estratégico para a expansão futura da agricultura. Para a SBPC, no entanto, a ciência pode fornecer essas informações aos legisladores para discussão consciente do Código Florestal. Ainda segundo o documento, novas tecnologias e competências estão disponíveis em instituições como o IBGE, o INPE, a Embrapa e universidades e podem ser rapidamente levantadas através de estudos em parceria. Se há essas tecnologias e competências em instituições públicas, o que falta para o país ter esses dados reunidos e os utilizarmos para tomar decisões como a do Código Florestal?
J.A – Falta política de Estado. Por exemplo, uma das grandes discussões do código florestal é sobre matas ripárias, sobre quanto deve-se preservar ao lado dos rios. Hoje existe tecnologia com uso de radares que definem o limite máximo de drenagem. o Inpe pode, para todo o país, dizer que o rio de largura x em Goiás, por exemplo, deve ter preservada uma área de 25, 30 ou 40 metros. Cientificamente está provado que não é correto ter uma definição fixa do quanto deve ser. O rio que corre no plano é uma coisa e o rio que corre num desfiladeiro é outra coisa. A Embrapa hoje tem tecnologias fantásticas de mapeamento de solos, e tudo pode ser usado. É preciso muita racionalidade nessa discussão.
EcoDebate – O senhor disse que essa ausência de políticas de Estado se expressa no dia a dia das pesquisas em nosso país?
J.A – Por exemplo, hoje não temos um serviço de extensão rural, que é levar as tecnologias nos institutos de pesquisa e universidades para o homem do campo. Poucos estados têm um bom serviço de extensão rural e isso é uma coisa que já existiu no Brasil. Antigamente existiam órgãos que se encarregavam de extensão rural e empregavam muitas pessoas. As universidades e a Embrapa produziam tecnologias e existiam os chamados extensionistas rurais, que eram geralmente agrônomos, biólogos, veterinários, que faziam experiências nas propriedades agrícolas mostrando como se conseguir maiores produtividades com sustentabilidade ambiental. Existia a Embrater, que atuava em todo o país e fazia um excelente serviço de extensão rural. Hoje a ciência evoluiu muito, mas esses serviços diminuíram. Hoje essa assistência é dada pelos vendedores de insumos agrícolas. Mas aí a coisa muda porque a assistência é dada com mais propriedade para quem compra, toda empresa de adubo tem seus vendedores de adubo que geralmente são agrônomos, que dão toda a assistência possível. Então, se você compra, tem assistência, se não compra, não tem. A ciência avançou muito. O Brasil é produtor agrícola de primeiríssima linha no mundo, mas o que percebemos é que essa grande de produtividade está nas mãos de poucos, se concentra.
EcoDebate – Esses avanços não se traduziram em qualidade de vida para a população?
J.A – Infelizmente não. Melhorou muito, mas ainda está muito distante do que deveria ser.
EcoDebate – Que outras ações a SBPC fará daqui em diante?
J.A – Eu acredito que a SBPC e a ABC e várias outras instituições de pesquisa fizeram a sua parte. Se a ciência não estiver presente no código florestal é porque os congressistas não quiseram escutar. Uma série de instituições está colaborando, tem muita coisa sendo considerada. Agora, o que sair nossos congressistas terão que assumir. É responsabilidade deles, fundamentalmente. Sairá um instrumento legal que certamente não será ainda o ideal, mas vamos torcer para que promessas que estão sendo feitas de que se continuarão estudos sobre isso realmente se efetivem. E que quando esse instrumento legal for aprovado, que não seja estático, que se continue trabalhando em cima dele.
Fonte: EcoDebate