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Opinião

Temer, oceanos e a conservação “inútil”

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*José Truda Palazzo Jr.

Aconteceu neste dia 19 de março um dos mais relevantes marcos para a conservação marinha no Brasil: a assinatura, pelo Presidente Michel Temer, dos decretos de criação dos mosaicos de Áreas Marinhas Protegidas abrangendo o entorno e parte das ilhas de nossos dois arquipélagos oceânicos mais remotos, São Pedro e São Paulo e Trindade e Martim Vaz. Nada menos do que 11 milhões de hectares de mar jurisdicional brasileiro foram postos sob Proteção Integral, ou seja, com exclusão total de atividades predatórias como mineração ou pesca, e outros 81 milhões destinados ao regime de Uso Sustentável, onde – finalmente, espera-se – venha a se botar ordem nesse atentado ao patrimônio público que é a pesca industrial no Brasil, quem sabe servindo de exemplo para se ordenar a atividade no resto de nossa Zona Econômica Exclusiva.

A criação dessas novas Unidades de Conservação coroa um processo de mobilização da sociedade civil organizada que, de maneira também histórica, reuniu instituições ambientalistas, pesquisadores, e empresários – incluindo a poderosa FIESP – além de ter contado com o apoio catalisador da grande Sylvia Earle, que selou a criação das UCs em visita ao Palácio do Planalto no dia 5 de março. Em meio a tantos apoios recentes, vale lembrar que essa campanha de pressão durou mais de dois anos, iniciada por umas poucas entidades, e teve origem em tentativas bem anteriores, que não conseguiram sensibilizar governos e ministros passados. Sensibilizaram a Sarney Filho, no governo Temer, e essa – a orientação ideológica do atual governo – é uma das principais razões pelas quais estamos vendo brotar ferozes críticas às novas UCs em alguns grotões das redes sociais e setores da academia, além de entre a habitual malta de ecochatos de ocasião: o atual governo não se encaixa nos padrões ideológicos da cumpanherada.

Não que uma parte das críticas que se ouvem seja descabida. De fato, têm razão alguns pesquisadores de renome que estudam a fauna desses arquipélagos, e foi principalmente para estes uma grande decepção ver que boa parte dos ilhotes em São Pedro e São Paulo, bem como das águas ao redor da ilha da Trindade, ambos locais de grande concentração de espécies endêmicas, raras e ameaçadas, tenha ficado de fora da Proteção Integral, por exigência da Marinha, nominalmente por questões geopolíticas, mas também por razões bem mais comezinhas: manter, naqueles, a pesca comercial do barco contratado que dá suporte à estação científica do arquipélago, que já ajudou a extinguir localmente ao menos uma espécie de tubarão, e nesta, a pesca “recreativa” dos marinheiros da guarnição mas que na verdade é pesca comercial subsidiada, já que exportam toneladas de peixes anualmente para o continente para venda, resultando em redução comprovada das espécies da frágil ictiofauna local. A Marinha, sob o comando do Almirante Bacellar Ferreira, se mostrou afortunadamente aberta ao diálogo, recebendo ambientalistas para conversar sobre o problema e se comprometendo a trabalhar com o ICMBio para resolver ambas distorções, o que acredito venha de fato a acontecer em curto prazo.

Esse detalhe, ainda que importante, serviu porém de desculpa para tentar se desmerecer a validade das novas UCs como um todo, esgrimindo os argumentos mais absurdos, como o de que é “inútil” se proteger grandes áreas oceânicas, de mar aberto, porque muitas espécies ali são migratórias e “seriam pescadas em outros lugares”. É o mesmo argumento pueril utilizado pelos defensores da caça à baleia no Brasil nos anos 70, que argumentavam que deveríamos matá-las aqui porque senão seriam caçadas em outras partes do Atlântico Sul… E também vociferam que sem a integralidade das ilhas tudo o mais careceria de qualquer valor ecológico.

A ver. É fato que a totalidade das ilhas e as águas de seu entorno não estão cobertas pela Proteção Integral, mas partes significativas estão, e no restante há que se lutar imediatamente pela implantação das restrições à pesca predatória subsidiada – algo fácil de fazer se houver para isso o mesmo grau de animação e envolvimento dos pesquisadores, tanto os diletantes ocasionais que estão militando nas redes contra a criação das atuais UCs, quanto dos outros, mais sérios, que ajudaram a subsidiar a sua criação. Dê-se o devido crédito à Marinha para buscar resolver esse imbróglio, e ponha-se a acompanhar isso tudo, se for preciso, o Ministério Público Federal, de forma a assegurar que não fique para as calendas a solução de um problema realmente grave de conservação.

No que tange às áreas de mar aberto, as objeções pecam pela simploriedade. No que diz respeito a São Pedro e São Pedro, o desenho decretado para a Proteção Integral nessas áreas atendeu quase que integralmente (exceção feita a abranger todas as ilhas) a uma proposta feita por um grupo expressivo e muito respeitado de pesquisadores durante a fase de Consulta Pública, abrangendo um polígono, segundo a carta enviada pelos mesmos ao Ministério do Meio Ambiente, que “com base em uma abordagem científica visa proteger um pouco de cada tipo de ecossistema, montes submarinos e contribuir com a proteção de processos biogeográficos e ecológicos importantes para a região”. Logo, das duas uma: ou a proposta feita pelos cientistas não tinha qualquer valor, ou as críticas feitas à totalidade da mesma pela ausência de uma parte das ilhas é que não tem qualquer valor.

Em relação ao mosaico da Trindade e Martim Vaz, cerca de 6.900.000 hectares, incluindo as ilhas do grupo Martim Vaz e o Monte Columbia, hotspots de biodiversidade, ficaram designados como de Proteção Integral. Nessas áreas, uma enorme variedade de vida marinha fica totalmente protegida. Seria melhor que esses grandes blocos estivessem unidos entre si, mas não termos conquistado isso de forma nenhuma invalida a proteção dada a esses hotspots. Tampouco o fato de que “apenas” cerca de 40% da ilha da Trindade e sua área costeira ficou sujeita a Proteção Integral permite a qualquer um dizer que tal proteção é “inútil”, porque ali se situa o habitat de parte expressiva das espécies dependentes da proximidade das ilhas, e que se pretende proteger como prioridade.

E quanto às áreas de mar aberto para além desses hotspots, o que diz a prática de conservação marinha conforme estudos científicos recentes? Uma breve consulta à literatura especializada demonstra que, apesar do habitual dissenso dos céticos sobre conservação, há ampla demonstração da importância de se dar proteção total a ambientes pelágicos, essas áreas ditas “inúteis” por alguns dos detratores das novas UCs. Já em 2009, Game et al. elencaram abundantes razões para a inclusão de grandes áreas oceânicas em Unidades de Conservação. Em 2010 Gaines et al. reconheciam a importância de grandes áreas marinhas sem pesca para a proteção de espécies pelágicas altamente predadas, ressaltando ganhos obtidos mesmo em áreas historicamente sobrepescadas. E estudos bem recentes demonstram que grandes áreas protegidas oceânicas podem dar a proteção necessária a grandes predadores como tubarões.

Resumo da ópera: se alguém acha que fechar 11 milhões de hectares de oceano à pesca predatória, principalmente ao espinhel pelágico que massacra uma enormidade de espécies por “captura incidental” como tubarões, tartarugas e aves, bem como impedir a mineração dos fundos marinhos, é “inútil”, minha modesta opinião é que esse alguém é ruim da cabeça ou doente do pé.

E se alguém duvida que essas áreas são importantes para a biodiversidade ou cobiçadas pela máfia da sobrepesca industrial internacional, basta uma olhada nos mapas da Global Fishing Watch, que mostram a operação de embarcações pesqueiras internacionais na borda e interior de nossa Zona Econômica Exclusiva. Não parecem, pelo visto, regiões desinteressantes aos que predam sobre a vida marinha, nem “inúteis” do ponto de vista de se proteger e ordenar estritamente o uso do patrimônio representado pelas espécies pelágicas…

É possível fiscalizar extensões de mar tão imensas como as ora decretadas como protegidas? A resposta é um rotundo e definitivo SIM. Para isso, não apenas é preciso aprimorar a presença da Marinha nas mesmas, como co-gestora do exercício de nossa soberania ambiental marinha, mas também recorrer às mais modernas ferramentas de fiscalização e controle existentes e já em uso por vários países. Drones de longa permanência no mar, já sejam aéreos, submarinos ou de superfície, podem ajudar a assegurar a presença de fiscalização, reportando informações em tempo real sobre presença de embarcações e sua movimentação no entorno e interior das UCs. Países como Palau, que declarou 80% de suas águas como Santuário Marinho, já lançam mão desse arsenal tecnológico com excelentes resultados. Além disso, a evolução de ferramentas de acompanhamento em tempo real ou quase real dos movimentos das embarcações de pesca industrial, através do já mencionado Global Fishing Watch e outras, permite que a fiscalização seja direcionada de forma bem mais eficiente e que o país possa exigir apoio e ações da comunidade internacional para perseguir e punir os piratas que invadem as grandes Unidades de Conservação Marinhas.

E as demais UCs marinhas por criar? Outra crítica disseminada nas redes é que, com a criação destas UCs gigantes, serão esquecidas as demais prioridades de conservação em áreas mais costeiras. Ora, isso só acontecerá se a sociedade se desmobilizar, e não pretendemos que isso aconteça. A ampliação do Parque Nacional Marinho dos Abrolhos, na Bahia, e a criação do Parque Nacional do Albardão, no Rio Grande do Sul, estão entre as urgências urgentíssimas para assegurar que o Brasil venha a cumprir de fato e de direito a Meta 11 de Aichi, que além de percentual em área exige representatividade dos ambientes costeiros e marinhos nas áreas protegidas. Esperamos ansiosamente que os que esgrimem essa crítica, muitos dos quais não ajudaram lhufas na campanha pelas grandes UCs, desta vez apareçam para apoiar a criação de mais áreas protegidas que precisam sair das gavetas em que repousam há anos, de preferência ainda este ano.

Este é um momento não apenas para comemorar a criação dessas enormes UCs marinhas, mas também para refletir sobre o conjunto da obra deste governo até aqui no que tange a áreas protegidas. Entre outras, celebramos de 2016 para cá a ampliação da Estação Ecológica do Taim, que caducou e teve sua re-decretação abandonada por Marina Silva quando era ministra; a criação do Refúgio de Vida Silvestre de Alcatrazes, empacado trinta anos na barafunda brasiliense; a ampliação, enfim, do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros para 240.000 hectares; a dinamização das concessões de serviços e das normas de Uso Público nas UCs; a nova Medida Provisória sobre compensação ambiental; e o decreto que permite a conversão de multas em prestação de serviços de conservação, estes últimos destravando a utilização de recursos imprescindíveis ao funcionamento das áreas protegidas. Com tudo isso, a presidência de Temer e a segunda gestão de Sarney Filho à frente do Ministério do Meio Ambiente vão passar, sim, à História como um dos melhores governos para a conservação da biodiversidade, apesar da gritaria dos ecochatos ideológicos de esquerda, silentes durante os 13 anos recentes em que imperou avassalador holocausto de nosso patrimônio natural, embalado pela corrupção desbragada e por uma visão de mundo medieval apoiada pelo povinho do contra, que ainda é capaz de achar desculpas pra reclamar de milhões de hectares de mar protegido. Ainda dá pra fazer bem mais neste governo, antes que entre em 2019 algum maluco inimigo do meio ambiente, seja pela esquerda ou direita. Bora trabalhar por isso, e também festejar os avanços monumentais como este que acaba de acontecer.

*José Truda Palazzo Jr. é vice presidente do Instituto Augusto Carneiro

Fonte: O Eco