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Opinião

Cultura do pet silvestre sustenta tráfico de animais no Brasil

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*Dimas Marques

O hábito de muitos brasileiros de criar animal silvestre como bicho de estimação é o maior responsável pelo tráfico de animais em território nacional. É bobagem tentar explicar esse crime afirmando que, por sua grande biodiversidade, o Brasil é alvo de traficantes de fauna estrangeiros. A exportação ilegal de animais existe, seja para colecionadores, zoológicos, medicina tradicional asiática ou pesquisadores, mas não é ela que explica a dimensão do problema por aqui.

O problema é cultural e isso não é levado em conta pelo poder público brasileiro.

Estimativa de 2001, da Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas), indica que cerca de 38 milhões de animais silvestres são retirados da natureza todos os anos no Brasil para abastecer o mercado negro de fauna. Isso sem contar com peixes e com invertebrados. Esse trabalho, que já tem 17 anos, é o que o Brasil tem de mais recente para dimensionar parte do problema.

É interessante destacar que o tráfico de fauna não se restringe ao comércio sem autorização do poder público de bichos vivos. A atividade inclui também a venda ilegal de partes de animais, como peles, penas, dentes, ossos e órgãos, e seus subprodutos, como peçonha de cobras (veneno), por exemplo.

No mesmo trabalho de 2001, a Renctas calculou que cerca de 4 milhões de animais são comercializados anualmente no Brasil e que apenas 0,45% desse total é apreendido pelos órgãos de fiscalização. Ou seja, apesar de o poder público basicamente investir na repressão como forma de combate ao tráfico de fauna, afirmação minha, o resultado é, no mínimo, frustrante.

Do total recuperado, a grande maioria é de aves. Dados do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) do período de 2005 a 2009 indicam que 80% dos animais apreendidos são aves. E os pássaros (ordem dos Passeriformes), aqueles pequenos que cantam e estão espalhados pelas gaiolas em todas as cidades brasileiras, são as principais vítimas. Em seguida estão os papagaios e as araras (Psitaciformes). É possível concluir, sem medo de cometer um grande equívoco, que o comércio ilegal de animais para serem criados como bichos de estimação predomina no país. Afinal, aves não são comuns em pesquisa científica ou para outros usos.

Chama também a atenção a informação de que entre 60% e 70% dos animais traficados no Brasil, dependendo da pesquisa consultada, ficam em território nacional. Ou seja, não são exportados.

Todos esses dados provam que o grande incentivador do tráfico no Brasil é o hábito do próprio brasileiro de criar animal silvestre como pet. Não adianta culpar colecionadores estrangeiros, que pagam fortunas por bichos raros, de espécies ameaçadas. Eles existem, mas o grosso do mercado negro de fauna no país está diariamente acontecendo nas feiras de rua e nos grupos das redes sociais na internet.

Uma pesquisa realizada a partir de dados da Polícia Militar Ambiental de São Paulo, com base em informações fornecidas por 129 pessoas autuadas pela posse de animais silvestres sem autorização em 2011, 2012 e 2013 na Região Metropolitana da capital paulista, indicou que 59% dos infratores alegaram como motivo para criar esses bichos a cultura familiar. Eles afirmaram terem sofrido influência de pais e avós que também possuem ou possuíam silvestres como pets.

Apesar desse contexto ser conhecido dos técnicos de órgãos de defesa do meio ambiente do Estado e de seus gestores, o poder público (União, Estados, Distrito Federal e municípios) ainda insiste em privilegiar a repressão como forma de combater o problema. Grave equívoco.

O problema não está em fiscalizar e reprimir essa atividade ilícita, considerada a 3ª ou a 4ª atividade criminosa mais lucrativa do mundo. Mas utilizar forças policiais e de controle como praticamente única ferramenta para combater o tráfico de fauna é de uma ingenuidade sem tamanho.

O crime da impunidade

O tráfico de fauna é um problema complexo que, para ser combatido com eficiência, necessita de ações em várias frentes. Atualmente, o poder público atua quase que exclusivamente por meios repressivos para tentar solucionar o comércio ilegal de animais. A ação é ineficiente, principalmente por depender de leis realmente punitivas – o que não é o caso brasileiro.

Entre os inúmeros problemas da legislação nacional, destaca-se o fato de a pena prevista para quem for condenado comercializando ilegalmente animais silvestres variar entre seis meses a dois anos de detenção e multa. Pelo fato de as penas para esses crimes serem inferiores a dois anos (o que os enquadram em ilícitos de "menor potencial ofensivo"), eles são submetidos à Lei 9.099/1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e abre a possibilidade da transação penal (pagamento de cestas básicas ou prestação de serviços comunitários, por exemplo) e a suspensão do processo.

Agrava a situação a Lei 12.403/2011, que estabeleceu o fim da prisão preventiva para crimes com penas menores que quatro anos de prisão, como o de formação de quadrilha. Pode-se afirmar então que o tráfico de animais silvestres é o crime da impunidade.

Como combater

O combate ao tráfico de fauna silvestre só terá chances de êxito se o poder público verdadeiramente se interessar em fazê-lo e coordenar uma ampla ação que deve atuar em cinco frentes:

1 – Elaborar um plano de educação ambiental de médio e longo prazos para sensibilizar e conscientizar a população dos problemas relacionados ao tráfico de fauna. Este item é fundamental e, apesar de constar em todos os diagnósticos do problema, nunca é efetivamente posto em prática. Vale lembrar: só existe quem vende porque tem gente comprando;
2 – Implantar programas de geração e substituição de fontes de renda para combater a pobreza, desestimulando a população a coletar e capturar animais nas áreas onde a atividade é um complemento financeiro;
3 – Estruturar e incentivar os órgãos de repressão e fiscalização;
4 – Contar com uma legislação com punição severa e que tipifique o crime "tráfico de fauna", diferenciando as penas entre quem cria sem autorização e quem trafica;
5 – Possuir infraestrutura adequada para o pós-apreensão, visando o retorno dos animais ao seu ecossistema de origem. Para tanto, é necessário:
6 – Técnicos para primeiros socorros aos animais durante as apreensões;
7 – Rede estruturada e preparada de centros de triagem de fauna silvestre e de centros de reabilitação da fauna silvestre nativa funcionando 24 horas;
8 – Procedimentos técnicos e eficientes para solturas;
9 – Áreas para solturas credenciadas e espalhadas por todos os biomas;
10 – Monitoramento pós-soltura para correção de problemas encontrados e verificação de metodologias.

Enquanto o Estado brasileiro não levar a sério o combate ao tráfico de fauna, continuaremos a empobrecer nossa biodiversidade com extinções de espécie, o que gera florestas vazias, comprometendo a produção de água e ar puro, além do equilíbrio térmico do planeta; animais continuarão a sofrer com a crueldade envolvida nesse comércio (estresse, fome, falta de água, lesões, etc.) e comunidades humanas permanecerão padecendo com doenças transmitidas por animais (zoonoses) e o SUS gastando recursos nesse campo. Isso só para não estender muito as consequências que o habito de criar passarinhos em gaiolas pode ter em nossas vidas.

Os animais silvestres brasileiros sofrem pelo fato de o Estado não possuir uma política nacional para gestão da fauna silvestre e ainda permitir que algumas espécies sejam objeto de comércio para o mercado de bichos de estimação.

Fauna é assunto sério.

*Dimas Marques é jornalista e editor do Fauna News