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Opinião

Greve dos caminhoneiros expõe o desperdício de alimentos

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*Amelia Gonzalez

O desperdício de alimentos se tornou pauta obrigatória durante esta greve (seria melhor dizer locaute?) dos caminhoneiros. Mesmo que tudo terminasse agora, mesmo que os caminhões passassem a circular livremente a partir do minuto seguinte a um acordo efetivo que deixasse as partes satisfeitas, assim mesmo haveria um grande, talvez incomensurável, montante de alimentos sendo jogados fora.

Imaginem, por exemplo, um caminhão que está há quatro dias na estrada cheio de tomates. Ou de batatas, ou de chuchus, inhames… Esses ou quaisquer outros produtos que tenham sido retirados da terra e que estejam dentro de um compartimento fechado, mercê de temperaturas não naturais. É claro que não sairão do cativeiro direto para a gôndola dos supermercados ou feiras-livres. Estarão passados, talvez com fungos, amassados, ou seja, nada convidativos para consumo.

Isso, para não falar do pior: cargas vivas. Animais que estão sendo transportados, segundo uma das muitas reportagens que tenho acompanhado sobre a greve, estão há dias sem alimentação adequada, o que é mais do que desperdício, um crime que só a humanidade tem coragem de cometer contra um ser vivo.

Preciso acreditar que muitos dos transportadores já tomaram providências com relação a isso. Mas o gesto de caminhoneiros que ontem jogaram 500 mil litros de leite em parte da pista e acostamento da rodovia MG-050, em Passos, Minas Gerais, é emblemático. Será este o fim de outras toneladas de alimentos? Terão, ao menos, já aberto as caçambas e distribuído a quem precisa? Pode ser que não. O desperdício de alimentos é algo que nem sempre é considerado uma grave falha, como deveria. Tive um pai estrangeiro, que de vez em quando se irritava com isso e dizia:

"Vocês, brasileiros, só vão aprender a cuidar do que têm em abundância quando passarem por uma guerra".

Outro lugar que tem recebido, legitimamente, os holofotes da mídia nesses dias é a Central de Abastecimento, Ceasa de Irajá. Para lá convergem os produtos que chegam das fazendas, é onde se compra tudo mais barato e é também o termômetro para se saber os preços que são praticados pelo mercado. Com a greve, o total de 300 megacaminhões que chegam ali por dia tem ficado reduzido a 30, 50. A batata, produto dos mais procurados, cujo saco de 50 quilos é vendido a cerca de R$ 70, R$ 80, está custando R$ 300. Isso é um desastre e afeta, sobretudo, os pequenos restaurantes que vende a preço barato com um lucro baixo.

Mas, falamos sobre desperdício. E semana passada estive na Ceasa, a trabalho, quando este assunto rendeu panos para mangas. Tomávamos um café, G. e eu, quando passou uma senhora bem carregada de milho. Deixou cair uma espiga. Fizemos menção de buscar do chão para ela mas não deu tempo: a mulher descartou nossa ajuda, fazendo um gesto com a mão que queria dizer que já estava carregada demais, não ia se importunar por causa de uma espiga. No segundo seguinte, um carregador passou também apressado e esmagou a espiga com as rodas de seu carrinho. Lá se foi um alimento.

Assim mesmo, pegamos do chão e oferecemos ao dono do café, que tem seu ponto ali no Ceasa há anos e quase se surpreendeu com nosso gesto:

"Ih… esse negócio de desperdício é comum aqui. Já tivemos um programa, se não me engano se chamava Banco de Alimentos, quando tentaram educar o pessoal. Mas não deu certo. Já estou acostumado. Tem dias que incomoda mesmo, a gente vê uma quantidade grande de produtos que são jogados fora com tanta gente passando fome no mundo…", comentou o comerciante.

Para ilustrar sua fala, busquei no site da Central de Abastecimento notícias sobre o tal programa, e fiquei feliz em saber que no mês de abril foram doados 91,5 toneladas de alimentos pelo Banco. Ao todo, foram atendidas 217 instituições que beneficiaram mais de 42 mil pessoas, diz a notícia.

"O Banco de Alimentos é um equipamento de segurança alimentar e nutricional, responsável por captar e distribuir alimentos que não foram comercializados, mas que estão em perfeitas condições para consumo", diz o texto explicativo. O Programa foi criado no governo Lula e funciona como uma espécie de distribuidora de alimentos que não estão em perfeitas condições para consumo, mas que servem ainda para nutrir.

"Os produtos são doados por produtores, comerciantes e pelo Programa de Aquisição de Alimentos- PAA, modalidade que compra com doação simultânea, composto por recursos do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), que consiste na compra do alimento do agricultor familiar que é doado para as instituições beneficiadas pelo Banco de Alimentos", completa o texto no site.

Falta combinar com os consumidores e com o pessoal que não se inscreveu no Programa. É bacana ter doado mais de 90 toneladas de alimentos, mas dá para ver, in loco, que tem muito mais a fazer. Há enormes lixeiras entre um e outro dos 43 pavilhões da Ceasa que ficam cheios de alimentos descartados e, não raro, ali as pessoas sem recursos correm para se abastecer com o que pode. Retiram do lixo o alimento que vai servir para nutri-las. E não precisava ser assim.

De qualquer forma, o comentário irritado e exagerado do meu pai não se aplicaria apenas aos brasileiros. Dados do ano passado liberados pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) revelam que, por ano, aproximadamente um terço dos alimentos produzidos em todo o mundo não é consumido pela população, sendo perdido em alguma etapa da cadeia de produção ou desperdiçado no elo final, em restaurantes e residências. Isso representa cerca de 1,3 bilhão de toneladas de alimentos que não são aproveitados ou, em valor monetário, uma quantia aproximada de US$ 1 trilhão.

É sobre cultura que estamos falando, sobre mudança de hábitos. E será, sempre, a falta de contato verdadeiramente respeitoso com o meio ambiente que nos cerca, a responsável por tanto desmazelo com produtos que, no fim das contas, servem para nos manter vivos.

Uma crise como esta, uma greve complexa, cheia de não-ditos e de não-combinados, há de, pelo menos, deixar visíveis essas falhas graves para que se possa pensar a respeito. Aqui perto de casa, por exemplo, tem um ponto final de ônibus e fico perplexa com o fato de o motorista deixar o motor ligado por cerca de cinco a dez minutos enquanto espera dar a hora da partida. Já fui até lá, expus a questão, pedi que desligassem, mas era tratada com um certo desdém. Pelo menos, assim eu percebia. É assim que me sinto sempre que mostro erros que cometemos contra a natureza.

Hoje não ouço mais o barulho irritante da máquina, embora o ônibus continue ali. Por que economizar só quando a escassez bateu?


*Amelia Gonzalez é jornalista

Fonte: G1