Entrevistas

Parque Nacional Serra da Capivara abriga um dos maiores sítios arqueológicos a céu aberto das Américas

Parque Nacional Serra da Capivara abriga um dos maiores sítios arqueológicos a céu aberto das Américas
Além de pinturas rupestres

Criado em 1979 no sudeste do Piauí, o Parque Nacional (Parna) Serra da Capivara abriga um dos maiores sítios arqueológicos a céu aberto das Américas. Com 129.140 hectares, o Parna abrange áreas dos municípios de São Raimundo Nonato, João Costa, Brejo do Piauí e Coronel José Dias. O parque é uma das últimas áreas do semi-árido possuidoras de importante diversidade biológica, com espécies da fauna e flora específicas e pouco estudadas.

Em 1991, a Organização das Nações Unidas pela Educação, Ciência e Cultura (Unesco) declarou o parque como Patrimônio Cultural da Humanidade. Mesmo com o título, governo e população parecem ainda não entender a importância do Parna. Durante uma década, o parque ficou abandonado, sofrendo com depredações, desmatamentos e redução da fauna e flora local. Atualmente, o parque luta para não fechar as portas. O turismo poderia salvá-lo dos problemas de falta de verba, pessoal e estrutura, mas é preciso um aeroporto funcionando para facilitar a chegada de turistas.

O aeroporto em questão é o Internacional da Serra da Capivara, que teve a primeira proposta de criação feita em 1987. Após 17 anos em obras, o aeroporto ficou pronto em maio, mas falta a homologação da pista pela Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) para que comece a funcionar. Para acelerar este processo, por iniciativa de um turista que visitou a região, foi criada uma petição online no site da Avaaz para liberação do aeroporto. A meta é coletar 100 mil assinaturas, que serão entregue a Anac e a presidente Dilma Rousseff.

Em 1963, a arqueóloga Niéde Guidon teve o primeiro contato com as pinturas rupestres que o Parna Serra da Capivara abriga. Desde então, iniciou uma caminhada pela proteção e sobrevivência do parque. Ela coordenou a implantação da infraestrutura turística e do Plano de Manejo da unidade de conservação e participou do processo de inclusão do Parna na lista de Patrimônio Mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), entre tantos outros feitos.

Niéde coleciona 81 anos de histórias de uma vida dedicada à conservação do parque e acredita que a única solução realista para salvá-lo é o desenvolvimento turístico da região. E parece que este sonho está mais perto de se concretizar. Segundo a Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), a Anac informou que vai homologar o aeroporto em agosto.

Amda – Como começou seu envolvimento com o parque?

Niéde Guidon – Em 1963, eu era arqueóloga do Museu Paulista e pessoas da região levaram fotografias de algumas pinturas rupestres daqui [parque]. Imediatamente vi a diferença delas com tudo o que era conhecido no mundo em matéria de arte rupestre. Nesse mesmo ano tentei vir conhecer a região: num avião da FAB cheguei a Petrolina, para seguir de carro até São Raimundo Nonato, mas a chuva tinha levado a estrada e não foi possível continuar.

Diferentes circunstâncias me levaram a viver na França e durante anos guardei aquela ideia de conhecer a região do sudeste do Piauí. Consegui voltar em 1970, a população local me mostrou alguns lugares com pinturas e prometi retornar. Voltei em 1973 com uma pequena equipe, depois em 1975, e finalmente em 1978 vim como uma equipe franco-brasileira numerosa e começamos a escavar, entre outros o Boqueirão da Pedra Furada, hoje o sítio arqueológico mais antigo das Américas.

Em 1991, quando o parque foi inscrito na lista do patrimônio mundial, o Governo Brasileiro pediu ao francês meu comissionamento para “fazer funcionar” tudo isto. Ainda estou aqui!

Amda – Após sua criação, o Parque Nacional ficou abandonado durante dez anos por falta de recursos. Neste período, a unidade de conservação sofreu com depredações, desmatamentos e redução da fauna e flora local. Conte-nos um pouco sobre os prejuízos causados ao parque.

N.G – Durante esse período o parque virou “terra de ninguém”, até lá os proprietários cuidavam de suas terras. Quando virou “terra do Governo” muitas pessoas acharam, por exemplo, que podiam caçar livremente e tirar madeira. Houve épocas em que saíam caminhões de tatus para serem vendidos em outros lugares.

Amda – Como a senhora conseguiu manter o parque durante esses anos? Quem a apoiou?

N.G – A FUMDHAM foi criada em 1986. Em 1989 conseguimos o apoio da Fundação Banco do Brasil e fizemos a primeira passarela no Boqueirão da Pedra Furada. Somente em 1995 conseguimos recursos, a fundo perdido, do Banco Interamericano de Desenvolvimento para a infraestrutura.

A partir daí começou nossa luta constante para conseguir recursos. Pela Lei Rouanet conseguimos apoios importantes, sendo o maior da Petrobrás. Tivemos momentos em que conseguíamos manter o parque sem problemas, especialmente quando as empresas podiam nos repassar a compensação ambiental diretamente, depois que o Fundo foi criado virou um problema.

Nunca tivemos um orçamento fixo e cada ano, cada mês é uma surpresa!

Como Unidade de Conservação, o parque deve ser protegido pelo Ministério do Meio Ambiente, por meio do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e, como Patrimônio Cultural, pelo Ministério da Cultura, por meio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Sabemos que esses Ministérios têm mais responsabilidades que recursos, também sabemos que existem mecanismos que eles podem utilizar para apoiar as ações necessárias, mas a realidade acaba se mostrando diferente do que deveria ser. Alguma coisa está errada!!!

Bom, enfim a única solução realista, na que acreditamos, passa pelo desenvolvimento turístico da região; esse processo ainda pode levar um tempo e por enquanto continuamos atrás de doações. A FUMDHAM criou uma conta na qual as pessoas podem doar qualquer quantia, a somatória de numerosas pequenas doações pode significar a solução paliativa.

Amda – A relação com a população que vive próxima ao parque é de apoio ao mesmo?

N.G – Quando chegamos aqui em 1970 tudo era muito diferente, as comunidades viviam muito isoladas do resto do estado, a única estrada que levava a Teresina, capital do Piauí, passava no meio de um areião, onde hoje é o Desfiladeiro da Capivara, visitado às vezes por mais de 400 pessoas em um dia, que bloqueava a passagem por vezes durante horas. No existia energia elétrica, menos ainda água encanada. Em 1978, para telefonar para o exterior, íamos até Canto do Buriti, a 100 km de São Raimundo Nonato. Para comprar uma alface na feira, num dia de sorte em que aparecia alguma, precisávamos madrugar. Mas certas comunidades viviam até melhor que agora, na região que hoje é Cel. José Dias, plantavam e vendiam algodão e mamona, culturas hoje desaparecidas.

O progresso tecnológico, a energia elétrica, a água encanada, o telefone celular e a antena parabólica criaram a necessidade de consumo e infelizmente fizeram esquecer técnicas de produção que antigamente permitiam viver e criar os filhos.

No começo e durante muitos anos fomos muito bem recebidos. A população local é naturalmente receptiva e acolhedora. Começamos a ter alguns problemas quando iniciamos o trabalho de desenvolvimento sustentado. Nossa intenção é criar mecanismos que permitam a esses povos viver e não somente sobreviver como fizeram até agora. Mas dezenas de anos vivendo de maneira dependente do governo, dos políticos, o povo criou uma mentalidade imediatista, que não é infelizmente exclusiva da região, mas brasileira por excelência; fizeram com que os caudilhos locais não gostassem de nos ver educar e abrir novos horizontes a seus “dominados” e começaram a revoltar alguns grupos.

Mas, analisando o resultado de 40 anos da presença da nossa equipe na região, pensamos que a comunidade se beneficiou e é hoje ciente de que sua única saída para o progresso é o Parque Nacional da Serra da Capivara e todas as atividades que ele cria.

A maioria das pessoas percebe como suas vidas têm mudado depois da implantação do parque e do museu, mas ainda tem muitas pessoas indiferentes.

Amda – O aeroporto Internacional da Serra da Capivara teve a primeira proposta de criação feita em 1987. Após 17 anos em obras, o aeroporto ficou pronto em maio, mas falta a homologação da pista pela Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), para que comece a funcionar. Como o aeroporto ajudaria a salvar o parque?

N.G – Quanto ao impacto do aeroporto devemos pensar que a demanda turística é grande, mas a maioria desiste por falta de infraestrutura receptiva, tanto por causa dos péssimos acessos como pela falta de hotelaria. Existem grupos hoteleiros interessados em construir hotéis aqui, mas esperam que o aeroporto funcione e que haja linhas aéreas pousando. O turismo é, sem dúvida, praticamente a única maneira de desenvolver a região. Basta ver os níveis de visitação de outros locais que são Patrimônio da Humanidade, mas que, mesmo com uma riqueza às vezes menor, tem uma infraestrutura adequada.

Amda – Se precisamos de um abaixo assinado para o que o aeroporto seja liberado pela Anac, supomos que há resistência contra isto pela mesma. A senhora pode esclarecer isto?

N.G – A petição (iniciativa de um turista que visitou a região) não é dirigida exclusivamente à ANAC.

Não se trata de que a ANAC tem alguma resistência, até agora ela somente exigiu que todas as condições da pista fossem perfeitas, o que está correto. Fez uma vistoria em dezembro do ano passado e apresentou ao Governo do Estado do Piauí (responsável pelas obras) uma relação de correções e melhoras que deviam ser feitas.

Recentemente, fomos informados extra oficialmente que as exigências foram cumpridas e estamos aguardando.

O aeroporto Serra da Capivara tem uma longa história, 18 anos desde que foi criado… a homologação da pista para voos comerciais é a primeira etapa, mas faltam ainda acabamentos e equipamentos no terminal, inclusive a chegada de água.

Amda – O parque possui centenas de sítios arqueológicos com pinturas e gravuras rupestres e variada fauna. Quais são as maiores ameaças ao mesmo?

N.G – A principal ameaça vem das consequências da falta de proteção e manutenção. Retorno da caça, falta de água para os animais, incêndios, pichações, roubos de equipamentos etc.

Amda – Em 1991, a Organização das Nações Unidas pela Educação, Ciência e Cultura (Unesco) declarou o parque como Patrimônio Cultural da Humanidade. Parece que mesmo a importância do título não foi suficiente para sensibilizar o governo brasileiro. A senhora pode comentar isto?

N.G – Acho que o principal problema do Brasil e a falta de continuidade da gestão pública, mudam presidentes, ministros, governadores e o que foi decidido antes é esquecido, se por algum “milagre” algum funcionário responsável se mantém no cargo consegue informar aos novos responsáveis sobre os compromissos assumidos. E talvez a ignorância dos responsáveis que nem sabem o que significa ser um Patrimônio da Humanidade!